Um maxilar gigantesco
As baleias. Se não as víssemos de vez em quando a vir à superfície para respirar (e engolir alguma personagem de ficção), talvez as julgássemos fruto da imaginação de um qualquer narrador antigo, criador de mitos e animais inventados.
Lembrei-me deste cetáceo gigante ao ler um livro que me veio parar às mãos há uns tempos. Já revelo que livro foi esse e qual a razão para os autores nos levarem a Saturno para falar de baleias.
Para já, quero contar qual foi a primeira baleia da minha vida.
Ainda antes de conhecer as outras baleias, que povoam os oceanos, a literatura e a imaginação dos povos, a minha baleia primordial era aquela que me assustava, já muito depois de morta, quando me punha a olhar para o osso gigante que está na Igreja de São Leonardo, na Atouguia da Baleia, terra dos meus avós e da minha mãe (e um pouco minha também).
Olhava para aquilo e ficava de boca aberta. Se o osso era uma costela (como se dizia que era), seria o bicho maior que aquela igreja? Que monstro mitológico era aquele?
À minha volta, dizia-se que o osso estava ali desde sempre. Talvez fosse mesmo a baleia que deu o nome à terra: Atouguia daquela Baleia. Uma terra que hoje está afastada do mar, mas que já teve um porto, nos tempos em que Peniche era uma ilha.
Há poucos meses, em conversa com Rui Venâncio, historiador da Câmara Municipal de Peniche, fiquei a saber que o osso está lá apenas desde os anos 70. Terá sido um osso trazido de Peniche, talvez encontrado nas redes dum barco. As pessoas da terra abanam a cabeça: nem pensar, está lá há muito mais tempo! Palavra puxa memória e há quem se lembre que talvez estivesse lá desde (quase) sempre, mas da parte de fora do monumento. Não faz mal: para mim, que nasci em 1980, o osso está lá desde o princípio dos tempos. O Rui (que também nasceu pela mesma altura) sorri. A História e a Memória nem sempre coincidem. Os historiadores sabem disso.
O Rui também me explicou que o osso não é uma costela. Será, provavelmente, um maxilar — e o maxilar representaria uns dois terços do comprimento do animal. A tal baleia não seria tão grande como a imaginava — mas não sei se não será ainda mais assustador imaginar que aquele monstro era uma boca gigante a navegar pelo oceano.
Avancemos, que ainda temos de chegar a Saturno hoje.
Na barriga da baleia
A primeira baleia imaginária — que é o tipo de baleia que mais encontramos ao longo da vida — foi a baleia do Pinóquio, o filme que fui ver com os meus pais, aos cinco anos, no Tivoli, naquela que foi a primeira vez que fui ao cinema.
O nome da baleia da Disney era — assim mesmo, em português — Monstro. Era lá que Gepeto ia parar e foi assim que descobri que é possível viver dentro de um cetáceo. Descobri depois que, na história original, escrita por Carlo Collodi, Gepeto não viveu dentro de uma baleia. É um caso perdido: as histórias mudam nos saltos que dão entre livros e filmes e entre contadores.
Gepeto não foi o primeiro a acabar numa baleia no final de uma sucessão de histórias contadas por quem acrescenta um ponto. Jonas, de fama bíblica, esteve no interior de outro monstro, que o original hebraico chama de «grande peixe». Hoje, muitas traduções referem uma baleia — e é numa baleia que o imaginamos.
Não, não corram já a bater nos tradutores. Na Antiguidade, a expressão «grande peixe» podia incluir as baleias: o conhecimento taxonómico mais preciso é preocupação dos últimos dois séculos. Os tradutores estão a trabalhar com textos de culturas em que não se sabia que a baleia está mais próxima de nós que dos peixes.
Mas, sim, uma baleia não é um peixe, como todos sabem (até o meu filho mais novo). As baleias mamam, as baleias não respiram debaixo de água (só vivem debaixo de água), as baleias nascem como nós, as baleias têm o sangue quente, entre outras características de bons mamíferos.
Não podemos falar de baleias imaginárias sem referir a mais famosa baleia literária: Moby Dick. Melville já vivia em tempos em que chamar peixe a uma baleia seria absurdo (mas ele tentou na mesma) — esta é a grande baleia, tremenda e assassina, símbolo do próprio mundo.
Ilustração de uma edição antiga de Moby-Dick (o título do livro leva hífen; a baleia nem por isso)
O antepassado das baleias
Se as baleias são mamíferos, e se os mamíferos se desenvolveram em terra, quer isto dizer que já houve um antepassado das baleias que caminhou em terra firme e, depois, se fez ao mar. Todos percebemos isto na teoria. Mas, quando vemos o aspecto reconstruído desse antepassado, ficamos de olhos arregalados.
Foi o que me aconteceu (ficar de olhos arregalados) quando encontrei um desenho desse cetáceo terrestre nas páginas de um livro (já lá chegamos). Parece tudo menos uma baleia. Parece uma espécie de cão!
Aqui está ele:
Os vestígios deste animal foram encontrados no Paquistão, numa zona que já esteve junto ao mar (Pakicetus é o cetáceo do Paquistão).
Nas últimas décadas, encontrámos esqueletos completos e as suas características não enganam: é um cetáceo, antepassado remoto das baleias, dos golfinhos e companhia.
Destes animais pré-históricos nasceram os nossos cetáceos, desde a baleia azul ao golfinho, passando por toda a caterva de cachalotes e outros mamíferos marítimos que conhecemos.
Mania das grandezas
Se começaram do tamanho de um lobo, por que razão os cetáceos se desenvolveram até se tornarem nos monstros da nossa literatura?
Um mamífero tem sangue quente. Ora, no caso dos mamíferos aquáticos, uma maior dimensão ajuda a conservar o calor, devido às características próprias da água, distintas das características do ar. Não é obrigatório que um animal de sangue quente se torne tão grande (há mamíferos aquáticos maiores que outros), mas a grande dimensão é suficientemente vantajosa para que a evolução empurre muitos mamíferos aquáticos em direcção à monstruosidade ao longo dos milhões de anos.
O mecanismo, no fundo, é simples: entre os vários indivíduos que nascem, dentro de cada espécie, sobrevivem melhor e reproduzem-se mais aqueles que se adaptam melhor ao que os rodeia. Aqueles cetáceos que entraram na água e, por acaso, eram um pouco maiores, conservavam melhor o calor e, logo, viviam mais, tinham mais filhos, aumentavam o tamanho da espécie… A evolução faz o que pode a cada momento, sem plano prévio. Há limites para a grandeza dos cetáceos, claro: uma baleia muito maior do que as maiores baleias da actualidade teria dificuldade em sobreviver, pois precisaria de muito mais força para bombear o sangue (por exemplo). De forma natural, todos estes factores vão entrando na invisível equação da evolução.
A história das baleias só foi reconstruída com maior exactidão (e mesmo assim há muito que não sabemos) nas últimas décadas, muito por culpa dos fósseis encontrados no Paquistão. Já percorremos um longo caminho desde os tempos em que as baleias era mais um dos grandes peixes dos mares.
Hoje estão em vias de extinção e a sua caça está proibida em grande parte do mundo. Em muitos locais onde se caçavam baleias, como nos Açores, fazem-se agora passeios para admirá-las. E é, de facto, um animal de pôr o coração aos pulos. É certamente mais majestoso que um qualquer Monstro do Loch Ness — e tão imponente como as maravilhas do mundo antigo.
Mas ainda não respondi à pergunta: que livro me pôs a pesquisar a origem das baleias e me levou, ao mesmo tempo, a Saturno?
Viagem ao livro na barriga da baleia
Pois bem, na barriga da viagem que andamos a fazer pela história das baleias, façamos uma outra viagem pelo livro onde encontrei o antepassado da baleia.
O livro tem como título O Guia Completo sobre Absolutamente Tudo* (*Versão Reduzida) — um título grande que é um grande título — e foi escrito por Adam Rutherford e Hannah Fry. A editora, em Portugal, é a Desassossego.
É ele próprio um livro-baleia, gigantesco na ambição e assombroso para quem o lê — com a agravante de ser divertido.
Não é difícil perceber de onde vem o estilo desempoeirado dos dois autores: além de cientistas com livros próprios muito interessantes, são apresentadores de um programa de rádio da BBC com o título The Curious Cases of Rutherford & Fry.
Depois de ler o livro, fui ouvir os dois últimos episódios, sobre a estranheza da água. Foi a minha companhia nalgumas das viagens pelo trânsito dos últimos dias— vale a pena, nem que seja para ficarmos a conhecer os curiosos sotaques britânicos de alguns convidados.
Se olharmos apenas para o índice, parece um livro com poucos pés e ainda menos cabeça. Mas não é assim: há uma história bem contada e muitas outras histórias lá pelo meio. É um livro com tudo e mais alguma coisa lá dentro, mas não é defeito, é feitio (é o que os autores prometem no título, aliás). Mais: o livro deixa-nos com vontade de ler outros livros, o que se recomenda.
Mas, afinal, onde entram as baleias no meio deste livro?
Por fim, as baleias de Saturno
No capítulo em que Rutherford & Fry nos descrevem os constrangimentos físicos da evolução (não teria sido possível criar formigas do nosso tamanho que tivessem as formas e proporções das formigas reais), também dizem algo que sabemos, mas de que nem sempre nos lembramos: a haver extraterrestres inteligentes, não têm necessariamente de ter formas semelhantes às formas do ser humano. Seria uma extraordinária coincidência que tivessem a nossa altura, duas pernas e dois braços e ainda uma cabeça onde nós a temos.
Para explicar isso mesmo, os autores levam-nos a uma lua de Saturno (e, sim, isto ainda tem algo que ver com baleias). Chama-se Encélado e tem este aspecto de nos deixar sem fôlego. A crosta desta lua é gelo e, no interior, há um imenso oceano.
Como sabemos que aquela lua de Saturno tem um oceano por baixo da superfície? Em 2005, a sonda Cassini conseguiu obter uma amostra dos jactos de líquido que saem dos vulcões dessa lua e percebeu que a composição do líquido é muito semelhante à composição dos nossos oceanos. Parte da água volta a cair, como gelo, na superfície de Encélado — e outra parte alimenta um dos anéis de Saturno.
Pois bem: se aparecesse vida em Encélado (afinal, foi também nos oceanos que a vida apareceu por cá, pensa-se), talvez uma possível espécie inteligente fosse mais parecida com uma baleia do que com um ser humano. O Pakicetus transformou-se nos majestosos cetáceos dos nossos mares por pressões evolutivas próprias dos oceanos — essas pressões seriam muito parecidas no oceano de Encélado…
Se um dia lá formos, talvez encontremos esses bichos, com formas vagamente cetáceas, esculpidos pela evolução de um outro mundo, que não pode fugir à física. Se isso acontecer, provavelmente iremos usar a palavra «baleia» para nos referirmos aos extraterrestres. Haverá, talvez, um cronista que refira como a palavra «baleia», nos tempos em que ainda estávamos presos ao apertado planeta Terra, significava um tipo de animal terrestre, um mamífero que voltara ao mar, e agora se generalizara para qualquer animal de sangue quente que percorra oceanos, com aspecto semelhante às velhas baleias engolidoras de personagens de ficção.
Serão as baleias de Encélado prováveis? Nem por isso. Mas não são impossíveis. Perceber as possibilidades e limitações do corpo de extraterrestres ajuda-nos — e foi por isso que os autores trouxeram o tema à baila no livro — a perceber as possibilidades e limitações da vida na Terra.
(Se quiser parar de ler e passar os próximos minutos a olhar com atenção para a foto e a imaginar uma viagem até este mundo extraterrestre, não levo a mal.)
Encélado
As voltas da imaginação
A imaginação humana dá muitas voltas. Imaginamos seres inexistentes, mas também imaginamos o que não vemos e realmente existe. Imaginamos dragões, baleias, luas geladas em redor de Saturno — e ainda as máquinas necessárias para lá chegar. E ainda conseguimos imaginar baleias em oceanos extraterrestres.
Que a literatura precisa de imaginação é algo com que todos concordamos. Mas a própria ciência também precisa — como poucas actividades — dessa imaginação. Os cientistas imaginam hipóteses, muitas delas bem mais incríveis que qualquer ficção — mas não podem ficar-se por aí. Têm de imaginar maneira de testar essas hipóteses, de recolher dados, de atirar as teorias contra a realidade a ver se se aguentam. É preciso curiosidade para imaginar o que está por baixo da superfície das luas de Saturno e, logo a seguir, arranjar maneira de ir lá saber.
Há também a imaginação necessária para explicar as descobertas científicas a quem não é cientista. Adam Rutherford e Hannah Fry têm-na aos magotes. Em mãos competentes como as destes autores, as descobertas científicas arrebatam-nos e põem-nos, noutra volta do parafuso, a imaginação a trabalhar — os bons livros de divulgação científica usam o conhecimento obtido de forma dolorosa e lenta pelos cientistas para informar, ensinar e comover os comuns mortais à força de oceanos subterrâneos e animais antigos.
Como pensa uma baleia?
Difícil de imaginar é mesmo como pensa uma baleia. O livro que andamos a percorrer explica-nos que cada animal tem a sua realidade — há animais que vêem em muito mais cores que nós, que conseguem cheirar muito mais do mundo (ou muito menos), que vivem num mundo subaquático de conversas mantidas a milhares de quilómetros de distância…
Não é só entre espécies. O livro também nos diz que, entre cada ser humano, há uma barreira difícil de ultrapassar. Afinal, há pessoas que vêem quatro cores primárias e muito mais combinações do que nós, os outros todos, conseguimos imaginar.
Não é preciso ir mais longe: a leitura dum livro, por exemplo, varia (muito) de pessoa para pessoa. No meu caso, talvez por causa daquele velho osso numa igreja da Atouguia, talvez por causa da baleia que vi no Tivoli em 1985, talvez por outra razão qualquer, depois de ler o livro, ficou-me a arder na imaginação a figura do antepassado dos cetáceos e, logo a seguir, a possibilidade de baleias extraterrestres — e ainda a ideia de vulcões de gelo.
Os seres humanos são muito diferentes uns dos outros. Temos, no entanto, suficientes pontos comuns para conseguir comunicar, mesmo entre línguas diferentes. Já a linguagem das baleias, mesmo aquelas que são da Terra e vêm de um pequeno mamífero que viveu onde é hoje o Paquistão, é bem mais difícil de entender. Também por isso ficamos tão espantados a olhar para esses animais mitológicos que existem mesmo.
A viagem já vai longa. Para quem não reparou, vou repetir: existe uma lua com um oceano subterrâneo, onde vulcões de gelo alimentam os anéis de Saturno. Só por esta imagem, já valeu a pena ler o livro, com baleias ou sem baleias.
Ah, ainda me falta dizer isto. As viagens nos livros nunca acabam. Já estou a começar um livro sugerido por Rutherford e Fry lá pelo meio daqueles capítulos. Hei-de contar por aqui como foi essa outra viagem — e falarei ainda de outros livros e de outras histórias.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.
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