De Lisboa a Istambul

Garrett via uma nesga de Tejo pela janela e queria ir, pelo menos, a Santarém. Um português de agora, da janela, pode ver muitas coisas — mas quase de certeza que vê um café. Assim, em vez de andar à volta do meu quarto ou ir a Santarém (nada contra, claro!), vou ao café da esquina — pronunciei-me.

Chego-me ao balcão e digo, bem alto: «Queria um café, se faz favor.»

O Antunes, que trabalha aqui há seis anos, sorri e não diz nada. Já me conhece e sabe que estou só à espera de um típico «Queria ou quer?» para começar a divagar sobre o imperfeito de cortesia. Em silêncio, começa a tirar a bica. Já me explicou um dia que só diz «Queria ou quer?» para quebrar o cliente, mostrar quem manda ali, ao balcão daquele café de Lisboa. Se for gente da casa, como eu, o café sai de imediato e não há cá piadas de café.

Sou eu e quase todos: pedimos um café, uma bica, até um cimbalino como um dia aconteceu quando ali aportou um homem do Porto, convencido por momentos de que estava na sua rua. Depois, claro, há as outras palavras todas: o carioca, o pingado, o descafeinado, a meia-de-leite, o galão. Depende da hora do dia, da disposição e da pessoa. Há quem prefira em chávena aquecida e sem princípio. São tantas as formas de beber café que me lembro da própria língua: todos a partilhamos, mas ninguém a usa de forma igual. Pois bem: o que eu quero é mesmo café.

O Antunes pega naquela manápula que já estive para lhe perguntar o nome, bate-a num pedaço de madeira já muito sujo das borras, como num ritual, volta a enchê-la de café moído, prende-a na máquina espresso (havemos de saber a história dela lá mais para a frente) e põe o mecanismo a funcionar. A água muito quente, em pressão, passa pelo café, enche-se do seu sabor, escorre depois pela pequena bica para uma chávena pequena, a ostentar o símbolo de uma das marcas de café que fazem a paisagem das nossas ruas. Agradeço, pago, pego na chávena. Vou para a mesa. Bebo de uma só vez, como um chuto de calor, sem açúcar. Tenho bagagens comigo. Vou de viagem, em busca da origem do café europeu.

Viajemos pois. A nossa viagem poderia seguir o percurso do próprio café, o produto, desde o Brasil, da Colômbia, de África, até este café da esquina. Mas não: não é esse o café que nos vai levar de viagem. O roteiro será outro: acompanharemos o café enquanto ritual, hábito, palavra — das areias da Arábia a Portugal. Será uma viagem por lendas etíopes, noites de insónia no Iémen, cafés de Istambul, um papa pasmado com o sabor da bebida, uma Viena intrigada com o cheiro do café bebido por quem a cercava, coffeeshops londrinas onde as ideias se bebiam, cafés parisienses de nomes imortais, e ainda o café onde alguém gritou «Às armas» — até chegarmos ao nosso país, que também tem essas armas no hino e onde o café corre no sangue de quem o bebe ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar, a marcar o ritmo dos dias portugueses.

Olho para o café na chávena e imagino-me, minúsculo, a surfar o fio de saboroso líquido, a rodar, a rodar, até ver nesse rodopiar as saias dos dervixes em Istambul. É para lá que vou, para iniciar este roteiro pela Europa do café até chegar às chávenas que o Antunes põe no pires para que eu beba de um só trago.

Poupo o relato da viagem de avião, a meca do mau café e da pior comida. Olho para o continente por baixo do avião, para o Mediterrâneo. Parte da história que vou contar vai passar-se aqui, mas tudo começa mais longe. Entretanto, aterro em Istambul.

Istambul tem o seu quê de lisboeta. Não há um rio a passar pela maior cidade da Europa, mas há o Bósforo e há aquela luz de água nos telhados. Há uma ilha com uma torre no meio da água, há eléctricos, há até barcos a fingirem-se de cacilheiros a navegar em direcção à Ásia (mas podia ser Almada). As duas cidades estão longe, em pontas distantes da Europa, mas reflectem-se na água da mesma maneira. Foi ali, na velha capital de tantos impérios, por volta de 1550, que terá surgido o primeiro café de toda a Europa. Hoje, não sabemos que café terá sido esse, mas podemos sentar-nos num café desta cidade tremenda, a conversar sobre o café que bebemos.

Para a nossa viagem pelos cafés da Europa, escolho começar no Mandabatmaz, aconselhados como fomos por amigos turcos que sabem o que é realmente bom nesta cidade. Pedimos um café e fico a olhar a apreciar a forma como é preparado — bem diferente da nossa.

Peço agora que imagine — imagine um homem a entrar naquele café e a perceber o meu interesse pela bebida que tenho à frente. Diz-me que é historiador e começa a contar a história da bebida, de onde veio, porque apareceu, para onde foi depois de Istambul. A história, na verdade, do café na Europa. É uma história com dois percursos diferentes: o café que entrou pelo sul e o café que entrou pelo norte. São percursos diferentes, mas que levaram ambos a que uma cidade europeia seja sempre uma cidade do café. (Um dia, depois, contaremos a história do café no mundo.)

A invenção do café: de Moca a Istambul

A história começou há mais de mil anos. Na Etiópia, os antigos contavam a história de Kaldi, um pastor que um dia encontrou as suas cabras a dançar depois de mastigar uma curiosa planta. Tudo isto se passou no século IX — ou será até invenção. Não sabemos e não importa.

O que sabemos é que a tal planta que punha as cabras a dançar tornou-se conhecida na outra margem do Mar Vermelho, no Iémen. Foi aí que místicos sufis, que tinham de orar durante toda a noite, precisavam de encontrar uma bebida que ajudasse a ficar acordado — bebida que não podia ser alcoólica, proibido como estava o álcool em todo o mundo muçulmano. Precisavam de um vinho puro, sem álcool, que criasse uma insónia artificial. Numa velha rua de uma qualquer cidade desse recanto da Arábia, alguém passou café por água muito quente e bebeu o líquido. Sentiu-se mais desperto, mais preparado para uma longa noite. Era um vinho ao contrário, que não inebriava. Tinha, nas mãos, a escaldar, uma bela chávena de café.

Que nome dar à bebida? Havia uma palavra árabe para um certo vinho, um vinho aquecido e misturado: qahwa. A palavra estava também associada à ideia de infusão — e começou a ser usada para denominar a nova bebida preparada com base na planta que viera da Etiópia.

O homem que me está a contar esta história num café de Istambul, lembra-me, depois de parar uns segundos para um trago do café turco, que há quem pense ver no nome do reino de Kaffa, nessa mesma Etiópia, a origem da palavra — mas, quando o reino apareceu, já a palavra árabe existia há muito tempo. Como em tudo o que é importante, a névoa rodeia a origem do café.

A bebida começou a ser usada pelos sufis para manter a cabeça bem acordada a noite toda. Tornou-se moda na Península Arábica. Há modas — talvez a maioria — que desaparecem. Outras mantêm-se o tempo suficiente para ganharem o belo nome de tradição. Foi assim com o café: tornou-se numa tradição árabe. O primeiro café — enquanto espaço para beber café — do mundo terá mesmo surgido em Meca.

Esta invasão da Arábia por esta bebida com nome de vinho não se fez sem detractores. Não estaria também abrangida pela proibição do Profeta? A discussão foi acesa, mas a tradição manteve-se. Afinal, era saborosa, era útil — e vendia-se tão bem que a proibição começou a parecer um pouco, digamos, inconveniente.

Enquanto a bebida invadia o resto da Península, no Iémen, em redor de Moca, a população percebia que tinha ali um produto que, bem plantado, dava para dar e vender. Mais para vender do que dar. Moca tornou-se no grande porto do café, onde todos iam comprar o extraordinário produto. Durante muito tempo, não se plantou café para beber em mais nenhum lugar do mundo — e todo o café saía de Moca.

Saído de Moca, rapidamente aportou à capital do mundo muçulmano de então. A grande Cidade, a velha Constantinopla, a velha Bizâncio — a tremenda urbe chamada Istambul. Em 1517, o governador do Iémen, Özdemir Pasha, levou a bebida até à corte de Solimão, o Magnífico. O mundo mudou no momento em que o sultão provou a infusão da planta etíope preparada pelo governador: o mundo passou a ter um indesmentível sabor a café.

Em meados do século XVI já havia vários cafés em Istambul. Na corte, o sultão empregava quarenta mestres de café, para prepararem o melhor café do Universo. Até as odaliscas do seu harém tinham de saber preparar um bom café. O café preferido pelo sultão espalhava-se pela corte e pela cidade.

A história não começou em Istambul, mas foi a Istambul que aportou, como capital que era de todo o mundo muçulmano — e foi Istambul que serviu de ponte, como é sina da cidade, para levar a bebida ao resto da Europa.

Em breve, o café conquistaria o resto da Europa — e o mundo.

Volto ao café de Istambul onde terminei o capítulo de ontem e reparo como o café é preparado por ali. Enquanto observo, o velho historiador que me apareceu à frente explica-me que o nome do café em turco tem origem na velha palavra árabe, mas adaptada ao turco: kahve. Ninguém levará a mal que digamos café, que tem origem nessa palavra turca e se compreende bem. Há, claro, uma miríade de cafés diferentes — mas o café mais simples, o mais normal, será o café à turca, ou seja, um türk kahvesi. É diferente do café que encontramos em Portugal: os grãos de café torrado são moídos e, depois, misturados com água fria e açúcar. Esta mistura é cozida num cezve, um recipiente de cobre e latão de cabo longo, até fazer espuma, sendo depois vertida para pequenas chávenas. O café é aromatizado com especiarias, como um pau de canela.

O Império Otomano conquistou e governou grande parte da Europa. Encontramos este café turco em países como a Sérvia e na Grécia — país onde, depois da invasão turca do Chipre, mais do que ser chamado café turco, passou a ser chamado café grego: ελληνικός καφές.

Pouco depois, já em silêncio, enquanto o trânsito de Istambul e as conversas das pessoas nos rodeiam num cansaço de fim do dia, decido ir ver os dervixes a conselho do tal historiador de café. Procuro o local que ele me indicou no mapa, entrou, e deixo-me hipnotizar pela dança das suas saias a rodopiar. Os dervixes são sufis, tal como os velhos místicos que criaram o café para orar — e talvez para dançar. Entre a cafeína no sangue e o embalar da dança, decido sair e visitar a cidade. Percorro as margens do Bósforo, vou à Ásia e regresso à Europa — no dia seguinte, tenho uma longa viagem até Veneza…

De Veneza a Viena: o papa que salvou o caffè

Veneza. Estou sentado no Caffè Florian, na Praça de São Marcos, o mais antigo café ainda em funcionamento de todo o mundo. Folheio um livro sobre as tradições do café em Itália, olho em redor, levanto-me e peço um caffè — a palavra italiana tem origem na palavra turca kahve. Trazem-me um espresso, não muito diferente da nossa bica (só bastante mais caro).

Muito antes de ser cenário de mil filmes e mil viagens de pacote, Veneza era a capital de uma república eterna, a bica por onde escorriam para a Europa as maravilhas da Rota da Seda. Por estas bandas deve ter surgido, talvez na mala de algum mercador entusiasmado, grãos de café prontos a transformarem-se na tremenda bebida à turca que acordava o palato e as mentes. O café vinha de Moca, claro está, passando pelo Suez e por Alexandria. Embarcava então para a velha cidade do Adriático. Ali, a ser cozido em água para depois ser bebido, espalhava o seu quente aroma pelas ruas e canais.

O novo vinho árabe encantava os venezianos, mas incomodava os mais ciosos da pureza religiosa da Europa. Íamos mesmo entregar-nos sem mais a uma bebida infiel?

Houve quem se fosse queixar ao papa desta nova mania. Tudo aquilo deveria ser proibido. Clemente VIII dizia que sim, mas que lhe trouxessem uma chávena do líquido para atestar como eram más as invenções dos Infiéis.

Assim se fez. Vejo mesmo o papa a esperar, enquanto um padre prepara, com cuidado, um café à turca, com esperança de que seja a última vez que alguém sente aquele cheiro do demónio.

O papa Clemente pega na chávena, com cuidado. Está quente, avisa o padre.

Bebe o primeiro gole, um pouco a medo.

Bebe mais um pouco.

Sorri.

Aquela seria invenção de infiéis, mas era uma invenção divina. Não só não seria proibida, como seria considerada, a partir de então, uma bebida cristianíssima. E que lhe servissem mais um pouco, se faziam favor.

Não foi o único momento em que o café se intrometeu na história da luta entre a Cruz e o Crescente no leste da Europa. Em 1683, os Otomanos cercam Viena, uma vez mais. Foi uma das últimas batalhas entre os Habsburgos e os Otomanos.

Os turcos, sabendo o que era bom, enquanto esperavam pela batalha, preparavam café. O aroma espalhava-se pelo ar até chegar aos narizes dos vienenses, que ficaram intrigados por aquele estranhíssimo e saborosíssimo aroma vindo das hostes infiéis.

A batalha correu bem aos vienenses. Diz a lenda que, em comemoração da vitória, se criou o croissant, a imitar a lua crescente dos estandartes otomanos.

Nas tendas abandonadas dos otomanos, diz também a lenda que se encontraram sacos da planta de origem etíope. Começou aí a tradição vienense do café. Para a criação dessa tradição, foram especialmente importantes dois homens: o polaco Jerzy Franciszek Kulczycki e o arménio Johannes Theodat. O primeiro ficou na lenda como o fundador do primeiro café, usando os tais sacos abandonados pelos otomanos. O segundo também ficou registado como o fundador do primeiro café, mas não na lenda — antes na História, que nem sempre concorda com as histórias que contamos. Theodat era arménio. Sabia preparar bom café lá na sua terra. Isso bastou para convencer os vienenses a provar a bebida. Já o polaco andou metido em espionagens e outras

travessuras e também fundou um café. Não foi o primeiro, é certo, mas pouco importa. A Viena que hoje conhecemos não se fez num só café.

Pouco a pouco, o café invadia a Europa, um continente onde todos, até então, bebiam álcool — na forma de cerveja ou vinho — de manhã à noite. Os europeus acordaram de um torpor de séculos. Espantaram-se. Conversaram. Inventaram. As cidades europeias nunca mais voltariam a ser as mesmas. Nos próximos capítulos, vamos ver o que aconteceu em Londres, o que aconteceu em Paris — o mundo mudou também por causa do café.

coffee de Londres e a vingança do chá

O café, apesar de abençoado pelo papa, era ainda um produto exclusivamente muçulmano no seu cultivo. Os otomanos controlavam a Península Arábica e controlavam também o comércio de café. Todos os grãos que saíam de Moca eram estéreis. Ninguém conseguia plantar café fora da Arábia — pelo menos, aquele café.

Os holandeses eram, por esses dias, os jovens turcos das navegações do Índico. Os portugueses, os antigos senhores do Comércio da Índia, já tinham visto melhores dias… Os holandeses começaram a ir a Moca, no Iémen, comprar café para distribuir pela Holanda e, já agora, vender aos ingleses. Foi assim que a palavra chegou ao inglês — não pela via otomana, que nos deu o caffè italiano e o café francês (e português), mas pela via holandesa. O koffie holandês, adaptado do árabe, tornou-se no coffee inglês.

Os holandeses não quiseram ficar-se pelo papel de intermediários. Era muito engraçado — e lucrativo — comprar a uns e vender a outros, mas e se conseguissem produzir? A rota do café pelo leste europeu era só de comércio. A dos holandeses havia de ser diferente. Para produzir café era preciso ter a planta do café. Bastava um enxerto da planta para conseguir transplantá-la para outros locais. De alguma maneira que os livros de História não contam, os holandeses conseguirem esse excerto e levaram-no para Java.

Terá havido um agente holandês a percorrer as ruas de Moca à procura de uma semente de café? Se houve, comunicaria com os locais, provavelmente, com algumas palavras portuguesas. No Índico, o português era uma espécie de europeu geral desde que os nossos velhos navegadores por lá tinham andado. Ou seja: muito antes de chegar a Portugal, já a nossa língua, falada por outros, acolhera o café, com um travo entre o árabe e o holandês.

Ponho-me de novo ao caminho. Percorro a Europa num carro alugado em Veneza e chego a Inglaterra. A viagem tinha muito que contar, mas hoje interessa-nos o café, apenas o café.

Em Inglaterra, o primeiro café abriu em Oxford. Entre orações sufis e estudo na velha Oxónia, aquela bebida ajuda a ficar acordado a noite toda. Nada melhor para uma cidade universitária — e ainda hoje, em qualquer simpósio ou congresso de académicos por esse mundo fora, temos o coffee break, assim mesmo, em inglês.

De Oxford, o café deu um saltinho a Londres, onde tomou a cidade de assalto. Durante a segunda metade do século XVII, as coffeeshops eram os lugares londrinos por excelência.

Numa livraria de Oxford, a ver passar os velozes académicos entre edifícios imponentes, entretenho-me a sublinhar num exemplar do Diário de Samuel Pepys todas as referências ao tempo que o autor passava em cafés. Não fazia mais nada! Os cafés eram, no século XVII, o contraponto sóbrio — e um pouco mais fidalgo — das populares tabernas.

Eram também a rede social da época. Os cientistas, os políticos, os comerciantes, os aristocratas: todos se encontravam nos cafés e trocavam ideias e mexericos. Cada café tinha a sua especialidade. Havia cafés para artistas, cafés para homens do mar, cafés para astrónomos.

Os cafés londrinos foram centros de inovação científica, tecnológica, académica e financeira. Houve invenções saídas dos cafés. Houve seguradoras saídas do café. Até a Bolsa de Londres começou num café…

Nas paredes dos cafés afixavam-se newsletters. Quem queria receber cartas a tempo e horas pedia para que fossem endereçadas para o seu café. Com o tempo, muitos cafés transformaram-se nos clubes londrinos que ainda hoje existem.

Mas as coffeeshops em si, como estabelecimentos para vender café, foram desaparecendo. Porquê? Porque a rainha Catarina, portuguesa de gema, inglesa por adopção, levou para terras britânicas a mania de beber chá. As mulheres, impedidas de ir ao café conversar (o café era coisa de homem), adoraram a ideia. Em breve, todas as classes sociais bebiam chá, que se tornou na nova bebida inglesa — e os cafés demoraram alguns séculos a voltar a Londres.

Às armas: café de Paris a Lisboa

Se em Londres o café bateu forte e passou depressa, em Paris foi um gosto adquirido lentamente — mas que depois ficou para sempre.

O primeiro café terá sido o Café Procope, criado por um italiano. O estabelecimento ainda hoje existe. Criaram-se outros cafés de nomes sonantes e reconhecidos por quase todos: o Café Parnasse, onde encontrávamos poetas e filósofos; o Café Anglais, onde se digladiavam os actores; o Café de Foy, onde Camille Desmoulins gritou, em cima duma mesa, num assomo de entusiasmo sóbrio, «Às armas, cidadãos!». O grito iniciou a Revolução Francesa, acabou enfaixado no hino francês — e, se virmos bem, ouve-se em eco no nosso próprio hino.

O café tipicamente parisiense foi também aparecendo pela Europa fora — e depois pelo mundo — como um eco, em refracção pelos diferentes materiais de que se fazem as culturas. Foi também em Paris que se manteve o hábito, perdido em Londres, de usar os cafés como espaços de debate, de entusiasmos, de partilha e de longas conversas a dois ou mesmo solitárias, de livro na mão.

Em Veneza, em Viena, em Paris, o café, o vinho árabe, uma bebida inventada ali entre a Etiópia e o Iémen, tornou-se num dos símbolos da Europa.

Agora, a história devia continuar para lá do Atlântico. Um francês levou o café para as Américas, com muito cuidado e risco para a sua alma, e dessa planta minúscula, plantada em Martinique, entre ilhas de naufrágios e febres, nasceu todo o café da América e de muito outro mundo.

Mas esta história que estou a contar é mais europeia — talvez um dia nos viremos para esses outros roteiros.

Mesmo uma viagem europeia à volta do café não passa sem aquilo que vem do resto do mundo. A Europa não se faz só na Europa. O café que bebemos em Paris é feito a partir de plantas nascidas na Colômbia — ou talvez no Brasil.

O café também não deixa de ser muito americano e há hoje cafés dos EUA em muitas cidades da Europa — até em Paris, até na Itália! O hábito europeu foi ao outro lado do oceano, aos EUA — onde o café nunca deixou de ser uma bebida importante, ao contrário de Inglaterra —, onde alguém pegou em nomes vagamente italianos e baptizou cafés para se vender em todo o mundo. Até em Itália, para horror de alguns italianos. Até em Inglaterra! Por causa das grandes empresas americanas, o café voltou em força a Londres. E, assim, depois de Moca, Istambul, Veneza, Londres e Paris, Seattle é agora uma das cidades do café.

Ainda em Paris, prefiro o espresso simples, com aquelas tradicionais variações que não fogem muito do pontapé na garganta que é o quentíssimo líquido escorrido da máquina.

Temos saudades da nossa bica. Voltemos, pois, a Lisboa.

Estou no Terreiro do Paço, entre estátuas e pombos.

O primeiro café de Lisboa foi criado logo a seguir ao Grande Terramoto. Ainda hoje podemos lá ir tomar uma bica: o Martinho da Arcada. Claro que, no século XVIII, não seria exactamente uma bica que tomaríamos, mas antes um café semelhante ao café turco. Hoje, bebemos o café espresso, invenção italiana que substituiu o café turco, na Itália, no início do século XX e que, após a II Guerra Mundial, se espalhou pela Europa e pelo mundo, com base no espresso tirado de máquinas de grande porte — uma das marcas das quais deu origem ao nosso termo nortenho cimbalino. No Martinho poucos ouvirão cimbalino. Ouve-se bica, talvez por causa da pequena bica por onde sai o café, ou então ouve-se simplesmente café.

espresso é tirado numa máquina, que faz passar água quase a ferver por café moído, caindo então essa água agora com o sabor reconhecível do café na pequena chávena que fica por baixo. O ritual deste café simples é bem reconhecível por qualquer português: enche-se a bica de café moído, encaixa-se na máquina, põe-se a chávena por baixo e liga-se a máquina e, enquanto o café escorre, aproveitamos para pôr o pires no balcão, para onde segue a chávena, a colher e o açúcar. É assim que se tira um café no Martinho da Arcada— mas também no Caffè Florian, em Veneza, ou nos cafés de Paris.

O café português é o espresso. Mas há mais café à portuguesa. Quem tenta aprender a nossa língua fica atrapalhado com as diferenças entre o galão, a meia de leite, o abatanado, o pingado, a italiana ou construções artísticas como o café sem princípio em chávena fria (ou outras combinações do género) —mas um café, assim, sem mais nada, é essa pequena chávena de café que bebemos várias vezes ao dia. A mania do café espresso invadiu Portugal, onde o café se tornou o estabelecimento de todas as ruas, com a máquina no centro.

Um português, de manhã, antes de entrar para o trabalho, saboreia uma bebida criada por místicos sufis há muitos séculos. Outros povos inventaram a bebida ou trouxeram-na para a Europa, mas nós assumimos com entusiasmo a cultura do café, que une todas as regiões e classes sociais do país. Se largarmos um português numa rua, é provável que procure um café. Não é só na rua: em casa, todos gostamos da nossa máquina de café. E, claro, um dos maiores prazeres de viajar é chegar a Portugal e contar o desastre que é o café do país aonde fomos. Lá fora, sentimos saudades da família, dos amigos — e da bica!

*

Só me apetece partir de novo, à descoberta de mais mundo. Penso nas areias do deserto e imagino-nos à procura de um café pelas ruas de Moca. Ainda alguém se lembrará por lá dos tempos em que o café bebido em todo o mundo era ali plantado?

Os hábitos são como a água que escoa pelo café e adquire o seu sabor. E assim, de volta à mesa de onde parti, levo a bica à boca e bebo, de um só trago, um café com travos de Londres, de Paris, de Veneza, de Istambul e das areias da Arábia onde, há muito tempo, alguém rezou pela noite fora numa insónia de café e inventou, sem saber, um pedaço da Europa — e do mundo (mas essa história fica para outro dia).

Texto criado com base no guião para o audiolivro que publiquei na Pilha de Livros.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas na página Certas Palavras e fala sobre livros na Pilha de Livros. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita