Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


Olhar para o futuro é o caminho, mas eu estou de quarentena há dois meses e tenho saudades tuas. Conheço-te desde que nasci. Talvez até antes. Bem sei, bem sei. Romanceio. Mas crê-me. Quando irrompi no primeiro berro, eras já tu que me arrebatavas, enchendo-me o peito de ar.

Vivemos juntos, em passo lento, naquela cumplicidade silenciosa de quem partilha o mais bonito dos segredos. Nunca te dizia com palavras, mas os meus olhos gritavam-te a beleza que viam e tu envaidecias-te, ruborescendo enquanto o Sol te abraçava.

Na boca de todos os poetas eu lia o teu nome, em cada soneto via o teu corpo. Dedicava-te toda a literatura que os outros escreveram por mim, por seres nas suas bocas o que me eras no coração. Vivi-te primeiro com eles, antes de te viver comigo. E como te amámos todos…

Passei depois a conhecer-te nos lamentos de cada fadista e aí senti ciúme. Quis-te na intimidade, para te cantar com as mesmas lágrimas, com a mesma saudade. Faltavas-me, deitado na cama. A pena dos escritores já não me amparava o desejo de te ter.

Foi passada a meninice que finalmente nos explorámos, entregando-nos às promessas até então tartamudeadas apenas no final da escola, às janelas dos autocarros da Carris, com o passe social pendurado ao pescoço. Nesse ímpeto adolescente, tomámo-nos inteiros, debaixo dos jacarandás. Oh, como te conheci então…

No Chiado, dei-te o primeiro beijo, à porta da Bertrand. Julguei ver o Pessoa, a tomar a bica na Brasileira, a acenar-me aprovadoramente com a cabeça. Estavas vestida de branco, mas tinhas no cabelo flores de todas as cores e, à cintura, uma faixa da cor do Tejo dava-te uma graça de menina. Nesse dia, descemos a Garrett de mão dada, percorremos juntos as ruas da Baixa e terminámos de pés molhados no Cais das Colunas.

Repetimo-nos muitas vezes, traçando mapas onde nos descobríamos aos poucos, na surpresa constante dos amores juvenis. Em Campo de Ourique, onde parámos para almoçar no mercado, pensámos em morar juntos. No Bairro Alto, boémios cantavam-te em línguas estrangeiras, e por isso fugi deles, porque te queria só para mim. Mas levaste-me ao Martim Moniz e ensinaste-me a partilhar-te. No Cais do Sodré, esperámos pelo barco, mas só eu entrei, para te acenar de longe. Fomos tão felizes.

Mas, um dia, as tuas graças pareceram-me baças. O teu vestido branco, as flores no cabelo, impossivelmente bacocas, provincianas. Apaixonei-me por outra, mais culta, boémia, sempre elegante e cocote com o seu chapéu plumado. Vivi-a num nevoeiro, inebriado em vinho bordelês, que acompanhávamos com comté e reblochon da Laurent Dubois. O seu encanto estupidificou-me, na forma como falava, na roupa que escolhia. Passeávamos no Quartier Latin, seguíamos o Sena com o olhar, trocávamos literatura na Shakespeare & Co. Não tivemos futuro, mal tivemos presente, mas ficou-me o gosto.

Quando eventualmente acordei do seu torpor, confesso que não me lembrei logo de ti, das tuas curvas, do teu cheiro. Regressei-te, mas inquietavas-me. Tu recebeste-me com amor e eu rejeitava-o. Não o queria. Acabamos sempre por despeitar o amor que sabe a casa. Eu invejava o que conhecia apenas na prosa dos outros, o que saboreava noutras bocas, o que sentia com outros dedos.

Assim, parti. Fiz sozinho o Canal da Mancha, embalado pelas promessas de Benjamin Clementine, e dei com outra, sedutora na sua seriedade, com olhos húmidos, cinzentos. Faltava-lhe a graça boémia, mas tinha no seu menear despachado e importante um charme e uma confiança que me deixaram curioso. Os primeiros encontros foram distantes, sempre na companhia de amigos comuns. Das trocas de olhares subtis ficaram sobretudo intenções nunca concluídas e era sozinho que terminava essas noites, em quartos de hotel com janelas que davam para pátios interiores. Aí, pensava em ti, porque não tinha mais em que pensar.

Encontrei-a pela primeira vez a sós uns tempos mais tarde. Passeámos por Covent Garden, fomos a uma exposição no Soho e terminámos loucamente apaixonados, nos braços um do outro, depois de uma memorável noite no West End. Trocámos promessas, jurei que regressava e voltei para casa, de coração desfeito, como voltava sempre.

Tu soubeste-me regressado e procuraste-me, deste-me novamente casa – foste-me sempre casa - mas sabias-me permanentemente no estrangeiro, fora de ti. A minha inquietação levava-me para longe, onde conheci muitas outras, das quais guardo memórias belíssimas, os jantares românticos em Trastevere, o passeio de barco no Prinsengracht, as caminhadas de mãos dadas nas Ramblas ou as tardes de copos no parque do Monbijou . Apaixonei-me loucamente por todas elas e a cada novo amor crescia-me a impaciência de conhecer o próximo.

Tornei-me um louco insatisfeito, até que de repente me descobri em casa e, pela primeira vez, casa não eras tu. Encontrei-a, por acaso, num banco do Washington Square Park. Tocava um saxofone de olhos fechados e o ritmo negro da música transiu-me. Desviei o olhar por um minuto, imaginei Coltrane, e quando regressei a ela, já me fugia pela 5.ª Avenida, numa corrida desenfreada. Persegui-a até ao Empire State Building, dando encontrões nas pessoas, que me insultavam. Ouvia-a a rir, sabia bem o que me tinha feito. Eu estava rendido, perdido para ela. Apanhei-a finalmente em Times Square, onde a senti pela primeira vez encostada a mim, com uma luz incrível, livre, única. Ela era o seu próprio Sol e ao beijar-me tornou-me em mais um dos seus pequenos asteróides.

Whitman prometeu-me libertinagem, passeios e felicidade e eu encontrava-a aí mesmo, descabelada no meio desse mundo para onde ela me chamou como se eu fosse o único. E eu fui, doido, crédulo, o único num mundo de únicos, que ela recebia com o mesmo beijo, com o mesmo Sol, com a mesma canção. Ganhei-lhe os hábitos e os vícios e adorei-os a todos como se fossem meus desde sempre.

Passeávamos juntos por Nolita, onde comíamos comida de imigrantes antes de cruzarmos a East Village em busca de livrarias esquecidas. No horizonte tínhamos prédios altos, de cujo topo nos víamos para sempre, num amor esbracejado e barulhento feito de manhãs frias no Central Park e de noites quentes nos terraços dos hotéis.

Amámo-nos junto ao lago, em Prospect Park, depois de cheirarmos todas as flores do Jardim Botânico. Na Brooklyn Bridge, vimo-nos plenamente, e nesse dia tatuei-a na memória e no coração. Terminávamos sempre na West 3rd street, à janela do meu quarto pequeno, com vista para todas as promessas que ela me fez. Fomos tão felizes.

Talvez tenha sido essa memória de felicidade que me levou novamente a ti. Comecei por te lembrar em sonho, sabes? Acordado, ela estava sempre demasiado presente para que me acudisses ao pensamento. Mas assim que adormecia, deixava que o sonho me levasse com ele. E estranhava de manhã ao perceber que me levava a ti.

Inquietei-me ao princípio, pois não me queria crer nostálgico. Ela era tudo o que sempre quis. Era todas numa só, uma explosão de vida e de experiências que me embriagavam, que me iludiam. Mas resignei-me a que me regressasses. A saudade está sempre em casa no coração de um português. Voltaram-me memórias de ti, das nossas caminhadas à beira do rio, dos croissants do Careca, do pastel de bacalhau com queijo da serra, do mar, dos Lusíadas, da Mensagem, da nossa língua.

Lembrei-me das pessoas que me apresentaste no Príncipe Real, dos segredos que me mostraste desde o miradouro da Graça, do elétrico amarelo onde subimos a Rua da Misericórdia, das gargalhadas que demos no Villaret. Lembrei-me muito do nosso primeiro beijo, à sombra dos jacarandás.

Fiz as malas e deixei-a. Ela não me olhou quando saí. Estou certo de que não lhe farei falta, mas espero que ela se lembre de mim. Voltei para ti convicto, mas não inteiro. Deixei-lhe lá uma parte.

Sabia que não seria a última vez, nem com ela, nem com outras. Ainda nem imaginava quão difícil se tornaria esta vida itinerante, assim que me roubassem a liberdade de itinerar. Mas hoje, que não te posso ter, enches-me de saudade. Não há nada como uma pandemia para nos alinhar os amores; a liberdade cria ilusões que se dissolvem ao primeiro contacto das grilhetas com a pele.

O regresso está para breve, já o imagino. Aterrarei na Portela, respirar-te-ei novamente. Serei abraçado pelos meus, que me aconchegarão como se não me vissem há uma vida, sem saberem que é verdade. Ver-te-ei cheia de luz e vou sorrir-te.

Eis-me, Lisboa, voltei para ti. Volto sempre, ainda que nunca deixe de partir.

*João Marecos escreve segundo o novo acordo ortográfico