1. A máquina de papel
Um livro é uma máquina? Como? Não tem peças que se movam, não precisa de combustível, não há por ali intrincados circuitos a fascinar os olhos dos miúdos.
E, no entanto, um livro funciona de uma determinada maneira e tem peças – então não tem? É feito de papel, aliás, de uma série de folhas cortadas, coladas de um dos lados, protegidas por uma capa. Papel e cola. E o papel está sujo com peculiares manchas de tinta… Quando queremos lê-lo, pomos a máquina a funcionar: começamos pela capa, viramo-la e temos folhas que passamos uma a uma, às vezes com esforço, outras vezes com muito gozo…
É uma máquina, sim senhor. Uma máquina que ninguém inventou. O livro foi sendo afinado — e continua a sê-lo! — por sucessivas escolhas de muita gente, subtis opções por esta ou aquela maneira de cortar, de dispor a lombada, de colar as folhas, de criar uma capa... As escolhas tornaram-se hábitos — e temos o livro como o conhecemos hoje.
2. A máquina de fazer livros
Para chegarmos a cada uma dessas máquinas de passar palavras, há uma série de gente que as imagina e fabrica: há quem escreva; há quem assuma o risco de pôr o livro cá fora, com todos os custos que tem; há o revisor, que procura incessantemente erros e gralhas, melhorando ali, hesitando ali, sugerindo uma ou outra palavra que melhore o texto – e às vezes lembrando o autor que aquela data não era bem aquela data, que esta passagem está óptima, mas esta parte, se virmos bem, podia ir para o lixo que não se perdia nada.
Há ainda quem prepare o texto para ir para a impressão – o que é bem mais complicado do que parece a quem está habituado a ver o texto já na página – e quem receba o documento e o enfie pela goela da máquina abaixo, para ver depois sair daquele ventre páginas e páginas de papel escrito.
No fim, a máquina dobra, a máquina cola – e há-de haver um artesão que pega no livro pela primeira vez, com ar sabedor, e verifica se tudo encaixou no sítio, se o aspecto e o cheiro e a textura estão como se quer…
E não nos esqueçamos: o livro podia estar feito, às centenas ou milhares de exemplares, e ninguém o ler – é preciso que alguém o venda. Desde o comercial da editora, passando pela distribuidora, até à livraria e esses pacientes vendedores, que às vezes encontram um livro só pela cor da capa e uma vaga memória dum nome de autor (provavelmente errado).
Também toda essa maquinaria económica e humana que leva o livro da tipografia às mãos do leitor evolui, faz-se e desfaz-se, adapta-se, recria-se – e às vezes é preciso imaginar outras maneiras de levar aos leitores esses objectos feitos do trabalho de tanta gente.
3. A máquina de ler livros
Chega o livro às nossas mãos. Há qualquer coisa de muito físico na volúpia de ter um livro para ler – e, às vezes, não o fazer, adiar um pouco, ir saltitando da capa para o índice, folhear e descobrir um parágrafo aqui e ali, parágrafo que, mais tarde, quando lermos o livro de fio a pavio, julgamos recordar duma qualquer outra leitura, estranhando essa memória armada em déjà vu.
Pois bem: o livro não precisa de electricidade, é bem verdade. Não fica sem bateria. É uma tecnologia que se basta a si própria. E, no entanto, um livro sozinho no deserto não faz nada. É preciso haver uma outra máquina que pegue naqueles rabiscos e os transforme noutra coisa qualquer: o cérebro do leitor – ou melhor, todo o corpo do leitor (se o livro for bom).
Há várias maneiras de mexer com o corpo de muita gente ao mesmo tempo. A música atinge-nos de imediato, nas vibrações do ar. A pintura recria uma imagem que nos entra pelos olhos e, às vezes, é mais intensa que uma memória de infância. O cinema pica-nos o corpo de mil maneiras com imagens e sons.
Já o livro — onde temos literatura e história e ciência e ensaios e explicações do mundo (e às vezes uma mistura disto tudo) — usa uma forma indirecta de chegar aos sentidos: através desse fiozinho de letras umas a seguir às outras que nos entram pelos olhos, sem mais cor que não sejam letras negras em fundo branco, recria palavras dentro da nossa cabeça e, com essas palavras, põe a maquinaria da nossa imaginação a rolar, a rolar cada vez mais depressa – tão depressa que às vezes temos de parar, olhar para cima, acalmar um pouco a fúria do que está a acontecer dentro de nós.
É por isso que não é tão fácil perceber à primeira o prazer intenso da leitura: há um treino, um hábito, um esforço – que, no entanto, quando funciona, trabalha os nossos sentidos todos, mas de dentro para fora.
Talvez por isso, por ser um prazer tão intenso, tão diferente de tudo o resto, fico de água na boca entre muitos livros. É uma sensação física, que me deixa de sangue aos saltos, o cheiro a papel a entrar por mim adentro, os dedos a passar pelas capas, a língua a percorrer os lábios, com vontade de pegar num destes bichos e pôr então toda a maquinaria da imaginação a funcionar.
Marco Neves | Tradutor, professor e autor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é o Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.
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