Os tradutores não trabalham com palavras isoladas: traduzimos frases, parágrafos, textos… A palavra «saudade» será traduzida de diferentes maneiras em diferentes frases. Pode até ser preciso escrever muitas palavras para traduzir aquilo que, em português, é dito apenas e só com «saudade». Mas é esse precisamente o trabalho dos tradutores, que são gente mais criativa do que se diz por aí — e muito habituados a resolver problemas, mesmo que o problema seja a palavra que todos dizem ser impossível traduzir. Estou certo de que em nenhum livro traduzido do português apareceu um espaço em branco com a indicação «aqui estava uma palavra que é impossível traduzir».

Poderá alguém contrapor: «Ah, mas não há uma tradução única, pelo menos em inglês.» É verdade que não, mas isso acontece com muitas palavras, das mais banais às mais complexas. A palavra portuguesa «café» também não tem uma tradução única em inglês. Tanto pode ser «coffee» (o produto) como «café» (o local) ou «coffee shop» (outra forma menos afrancesada de nos referirmos ao café enquanto local)… O mesmo acontece com muitas outras palavras — e é o que acontece com «saudade», que pode ser traduzida de várias maneiras em inglês. Também há muitas palavras inglesas que são traduzidas por diferentes palavras em português, dependendo da frase. Basta pensar no verbo «to get», por exemplo, que tem muitas traduções diferentes, de «arranjar» a «compreender», ou na palavra «key», que pode ser «tecla» ou «chave».

Mas mesmo que queiramos encontrar uma tradução única para a palavra isolada, porquê limitarmo-nos ao inglês? Quem afirma, peremptório, que «saudade» não tem tradução conhecerá, porventura, todas as mais de 7000 línguas do mundo para poder saber que em nenhuma delas existe uma palavra equivalente? Em romeno, por exemplo, existe a palavra «dor». Quando perguntamos a um romeno o que quer dizer esta palavra, a descrição aproxima-se das nossas descrições de «saudade».

Quem me lê poderá agora dizer: «Ah, mas a tradução de “saudade”, seja ela qual for, nunca é exactamente a mesma coisa que a nossa, muito nossa, palavra.»

A tradução nunca é a mesma coisa! Isso aplica-se não só a «saudade», como a quase todas as palavras. Voltemos ao café. Se eu digo «café», lembro-me imediatamente da pequena chávena de café bebido quase a ferver… Já a mesma palavra em espanhol ou em inglês irá acordar outras imagens na cabeça dos falantes. Um inglês irá pensar num copo bastante grande… Um espanhol talvez pense, em primeiro lugar, no famoso café com leite. Quer isto dizer que «café» é intraduzível? Mesmo dentro de cada língua, cada palavra terá um sabor muito diferente na cabeça de cada falante. Se eu digo «praia», lembro-me das praias da terra da minha infância. Se alguém nascido numa terra mais para o interior disser «praia», pensará nas férias da sua infância. As palavras são traduzíveis entre línguas — mas são, por vezes, intraduzíveis entre pessoas.

Para lá das intermináveis discussões semânticas sobre o significado de uma palavra isolada, há o uso real e diário da palavra: aí usamos frequentemente o plural «saudades» e não conheço um tradutor que tenha dificuldade em traduzir uma frase como «Tenho saudades tuas!» ou «Tenho saudades desse tempo!» — e outras parecidas — para outra língua. São frases traduzidas todos os dias…

O mito da intraduzibilidade de «saudade» é apenas um exemplo dessa ideia peregrina de que há muitas palavras sem tradução só porque há palavras que não podem ser traduzidas usando uma só palavra. Cada língua tem algumas palavras que se tornam especiais, que parecem representar melhor que outras a alma nacional. A ligação de «saudade» à alma portuguesa tornou-se um tópico recorrente: somos um povo que suspira de saudade à beira-mar, com as caravelas no horizonte… Gostamos tanto desta imagem que às vezes até dizemos que só os Portugueses sentem saudades, como se as emoções fossem exclusivas deste ou daquele povo. Ora, não só há outros povos que usam a nossa palavra (os Brasileiros, que têm o Dia da Saudade, os outros povos de língua portuguesa e ainda os Galegos, que lhe juntam a morrinha), como a palavra pode ser traduzida, com mais ou menos facilidade. E estou certo de que, com ou sem tradução, não há ninguém no mundo que não sinta saudade de alguma coisa…


Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos.