Assinala-se hoje o Dia Internacional do Beijo, porém, o juiz Ivo Rosa decidiu antecipar a efeméride para a passada sexta-feira. Apesar da chuva de críticas que se abateu sobre o despacho de instrução da Operação Marquês, acerca das prescrições e da suposta impossibilidade de levar Sócrates a julgamento por fraude fiscal, o gesto de carinho mais relevante daquela tarde foi o Beijo de Judas que o magistrado hiper-garantista espetou em Sócrates. Uma celebração oscular antecipada, um rito pascal adiado. O juiz de instrução dinamitou a acusação quase toda, mas — se nem Ivo Rosa tem dúvidas de que José Sócrates “mercadejou” o cargo de primeiro-ministro — saímos desta fase do processo com a certeza de que José Sócrates não tem reabilitação política possível. 

Não é que não haja um ou outro batalhão de militantes do socratismo na reserva. Não serão poucos aqueles que aguardam pelo momento em que poderão sair à rua, cantando em coro o pungente hino “Obrigado, José Sócrates”, defendendo a restituição imediata da legitimidade política do frugal ex-governante, que não roubou nada para além do coração dos portugueses. Também por culpa do PS, que — ao contrário do que se queixa Sócrates — nunca soube verdadeiramente colocar Sócrates em isolamento profilático, há quem olhe este processo com o filtro do clubismo político, julgando que condenar, moralmente e sem reservas, a conduta de José Sócrates é alinhar com a agenda da direita. A percepção de que as “falcatruas do meu espectro político não são nada comparadas com as falcatruas do teu espectro político” mina mais o combate à corrupção do que juízes com vícios ilibatórios e estende a passadeira ao “bloco central de interesses” para que continue a envolver-se em cambalhotas com o poder económico, sem receio de uma censura transversal dos portugueses. Aqueles que não alinham nesse tribalismo, poderão, enquanto o “centrão” continuar sem refletir, ter a tentação de encontrar validação no mais inconsequente dos populistas.

Para além de beneficiar desta dissonância cognitiva que recusa o consenso perante o óbvio em nome da defesa da fortaleza ideológica, o Socratismo ainda floresce na mente complacente dos que, admitindo a contragosto a possibilidade de prevaricação, ainda assim continuam a admirar o estilo de José Sócrates. A Operação Marquês é uma bomba mediática, não só pela dimensão megalítica dos envolvidos e pela gravidade das acusações, mas também pela teatralidade de José Sócrates. Há quem continue a ser seduzido pela combatividade do homem (ainda que seja na defesa dos seus próprios interesses), pela rispidez para com os jornalistas, pela historieta de que “a direita política” montou tudo isto (“uma urdidura”) para impedir a sua candidatura a Presidente da República. 

Contudo, estou em crer que encanto não é transferível para um boletim de voto: o facto de um juiz “insuspeito” ter arrasado toda a acusação menos o famigerado “mercadejar” fere mais a narrativa de Sócrates do que a alimenta. Sócrates está a tentar uma Lula-da-Silvização, mas, em princípio, caminhará sozinho. Os crimes prescrevem, o arguido está proscrito. 

Recomendação 

Este livro.