Deve Portugal pedir desculpa por atos do passado? Pelo colonialismo, o racismo, a escravatura, a depredação de bens naturais e património? E indemnizar os (países e pessoas) lesados? Como e sob que forma?

Este é para mim um assunto importante que, à semelhança de outras questões polémicas, não deve ser exclusivo de ideologias radicais, nacionalistas, xenófobas, iliberais. Essa é a beleza das ideias moderadas e civilizadas: discutir todos os temas, por polémicos que sejam, racionalmente, com elevação e ponderação, sugerindo soluções exequíveis não semeadoras de conflito.

E por isso, sobre a pergunta “Deve Portugal pedir desculpa pelo seu passado e indemnizar os povos e países pretensa ou potencialmente lesados?”, respondo Não. No limite, pode, talvez deva, assumir responsabilidades por atos concretos, por natureza imprescritíveis, recentes, em que a culpa tem nome. Mais do que isso, não.

Generalizar, lançar um anátema sobre o nosso passado, envolvendo todo o povo português, quase que a pedir desculpa por existir, por termos feito o que fizemos, o odioso e o grandioso, além do dominante banal, como tantos outros poderes, povos e indivíduos fizeram ao longo da História, é inaceitável, hipótese que só se coloca em tempos de relativismo moral e absolutismo ético; tempos do politicamente correcto, de identitarismos radicais e intolerantes, de wokismos extremados; de uma cegueira que corrói os laços de lealdade, fidelidade e amizade. Do fenecer da empatia.

São 10 as razões para a minha posição.

1ª razão:  o erro cronocentrista. Ajuizar, julgar e condenar realidades e sociedades do passado sem ter em conta a moral ao tempo dominante é um erro comum, um enviesamento censurável. Sobrevalorizar o presente sem atender ao facto de os valores, comportamentos e princípios seguidos na época em causa serem muito diferentes dos atuais, é uma forma de preconceito e um erro de julgamento.

2ª razão: o colonialismo vem da noite dos tempos. Todos os povos, organizados em tribos, reinos ou impérios, que subjugaram outros, abusaram do seu poder e riqueza, ocuparam, reinaram (latu sensu) e exploraram. Colonizaram. Vão todos eles, os seus descendentes, sejam quem forem, da Suméria à atual Rússia, pedir desculpas por isso? Pela colonização e seus efeitos? Como julgar, a esta luz moderna, as colónias construídas na antiguidade por egípcios, fenícios e romanos, ou os recentes colonialismos alternativos (aos ocidentais), russo, otomano ou japonês? O norte-americano? Irão esses povos indemnizar-se uns aos outros? O encontro de contas não será fácil.

3ª razão: a batalha contra o racismo, chaga da humanidade, trava-se a Ocidente. Humanos, pela cor da sua pele, pela cor dos seus olhos, olham para outros humanos como inferiores: uma realidade antiga como o mundo – e, como ele também, atual. Será Portugal um país racista (velha e longa discussão)? São os portugueses racistas? Certamente que sim. Como o são praticamente todos os países e povos do mundo, em relação a outros povos e etnias. Faz parte da natureza humana. A luta contra o racismo é uma aprendizagem, faz-se com inteligência, bom senso e moderação. Não nascemos não-racistas, aprendemos a sê-lo. Os portugueses são mais racistas do que os outros? Claro que não – ou haverá que prová-lo, mas não com afirmações ocas de princípio ou opiniões inflamadas.

4ª razão: a escravatura, outra chaga da humanidade (há várias), começou a acabar no Ocidente (mas ainda não acabou noutras geografias).  Nada foi mais natural durante milénios do que ela. Estipulava o Código de Hamurabi (1772 a.c.): “Se um escravo (…) for culpado, o seu senhor cortar-lhe-á uma orelha”. Vae victis, estabelece há milénios a lei dos homens, da Mesopotâmia ao Antigo Egipto, da China e Índia antigas à Grécia clássica, Império Romano, Sultanatos e Califados árabes, civilizações pré-colombianas. A escravidão era endémica em África, observou Braudel. Entre os séculos 16 e 19, a Europa superou o mundo árabe no tráfico de escravos. Mas foi justamente o “horrível” Ocidente alargado a abolir a escravatura. Dinamarca, Inglaterra, Portugal. Em 1815, o Congresso de Viena decretou que os princípios da humanidade e da moralidade universal justificavam acabar com o comércio de escravos, “odioso na sua continuidade”.

5ª razão: o colonialismo português não foi certamente pior que os outros. Quando muito – é polémico, mas seja – foi melhor. Pecou pelo fim tardio, mas não foi mais cruel nem predador, para me ficar só pelo colonialismo europeu, do que o britânico, holandês e francês. Certamente do que o belga. Não é justificação para os males que também existiram, mas Portugal saiu das colónias com obra feita. Não se passava fome na África portuguesa, havia infraestruturas sólidas, Luanda era das cidades que mais crescia no mundo. São factos. Conheço-os, vivi lá. Estava em curso, lenta, indesculpavelmente tardia, mas real, a inclusão dos africanos negros no ensino e na administração. O fim do colonialismo era inevitável – essa é outra discussão – e devíamos ter saído de forma a impedir a ruptura que levou à implosão do constructo social e ao retrocesso civilizacional na maior parte das antigas colónias portugueses. Mas este nosso pequeno e pobre Portugal não deve pedir desculpa por ter feito pelo menos o mesmo, provavelmente melhor, do que países mais ricos. Não transformemos em vergonha o que, salvo episódios reprováveis e que devem responsabilizar os seus perpetradores (veja-se a 9ª razão), deve em grande parte ser motivo de orgulho para os portugueses. Não nos envergonhemos, para isso bem bastam outras maleitas, pela saga dos portugueses antigos que, oceanos fora, abriram novas rotas e puseram em contacto civilizações, quantas de antes isoladas e atrasadas civilizacionalmente.

6ª razão. Castigar os que aboliram os males pelos males que cometeram antes de os abolir. Como refiro em 4, os europeus foram pioneiros da abolição da escravatura. Portugal foi um deles, tal como da pena de morte e outros males com raiz na noite dos tempos. O Ocidente “inventou” a democracia, o liberalismo, a liberdade, os direitos humanos, o primado da lei. O Ocidente, incluindo Portugal, lutou por leis universais para defesa dos direitos humanos, valorizou a dignidade humana, tornou a mulher (tendencialmente) um igual e não mais, como ao longo de milénios (e ainda o é em tantos países), um ser subalterno. Afirmou esses valores, quantas vezes pagando-o em revoluções sanguinolentas, pilares da construção de novas sociedades, as modernas, as contemporâneas. Se devemos pedir desculpa, outros povos, tantos outros, terão de pedir desculpa pelo que fizeram – nalguns casos, pelo que ainda fazem.

7ª razão. A ética. Invenção clássica, grega, europeia, estende-se até aos nossos dias como forma suprema – e ao mesmo tempo seminal – do domínio da consciência individual sobre a moral social. Assumir-se a Europa, Portugal, culpados de uma realidade pretérita, pedindo desculpas e indemnizando não se sabe quem por erros do passado, seria rejeitar – e ofender – a coragem e o sacrifício de tantos milhares de indivíduos que, em nome da ética e da bondade humana, lutaram contra regras estabelecidas e valores consolidados, em nome da dignidade. Tantos!

8ª razão: Reparar os erros do passado, até quando? Até quanto? E quem julga? Houve sempre dominadores e dominados, colonialistas e colonizados, esclavagistas e escravizados. Que fazer? Todos deverão reparar os danos dos outros, sucessivamente? E até quando, atrás no tempo? Como fica a justiça – e que justiça será? – se, na forma como a questão é formulada, se castigar quem, nos últimos séculos, por razões civilizacionais e (ou) de desenvolvimento económico e tecnológico, predominou e, também por isso, dominou e colonizou; os mesmos que, ao mesmo tempo, decretaram a condenação moral – e, logo, ética – da escravatura, da dominação, do colonialismo, da pena de morte, das ditaduras, das cleptocracias, que em muitos casos lhes sucederam (e esses, pagarão quando?). Que justiça será essa?

9ª razão: O silêncio dos inocentes. E como julgar milhões de portugueses que nasceram em África ou noutros lugares do Império, ou para lá viajaram em busca de uma vida melhor, lá geraram vidas e viram-nas crescer, até aqueles que lutaram pela pátria, convencidos, ingénua mas sinceramente, de ter a razão pelo seu lado? E os mortos e os feridos e os que comeram o pão que o diabo amassou? Entenda-se uma coisa que devia ser simples de entender, mas nestes tempos de exacerbo ideológico choca com uma parede de incompreensão: o desvario de alguns (ou muitos) indivíduos, barbaridades como em Wiriyamu ou outros excessos responsabiliza quem os cometeu e apenas eles, não um povo inteiro. Os portugueses, eu, os leitores, não são responsáveis – ainda para mais quando os atos em causa foram praticados há 50, 100 ou mais anos. Não, não somos todos negreiros, esclavagistas, assassinos, colonialistas ou fascistas.

10ª razão. No fim de contas, tudo pode ser reconduzido à primeira razão. Há tempos velhos e tempos novos, até que os novos se transformam em velhos e novos tempos novos chegam; as épocas mudam, os valores e princípios reconhecidos pela sociedade transformam-se. Ao longo desses tempos velhos e novos, a vida em comum foi-se adaptando, constantemente, às novas regras, em busca do equilíbrio e daquilo a que Platão e Aristóteles chamaram a vida moral (a vida boa, ou virtuosa). Sem essa evolução, sem aceitar as etapas que nos trouxeram a um tempo, o agora novo, em que muitos dos demónios antigos – da escravatura à guerra, da guerra às ditaduras, do colonialismo à corrupção – foram vencidos, ou pelo menos condenados, o tecido social voltaria a ser corrompido, o progresso, o desenvolvimento e o bem-estar social dificilmente prosseguiriam.

Julgar factos passados à luz da moral atual é um pecado – e pode ser um crime contra a humanidade se desse julgamento derivar a rutura do tecido social laboriosamente tecido ao longo de séculos. Uns contra outros, todos contra todos.

No fim de contas, afinal, tudo se resume ao cronocentrismo.