Qualquer pessoa que visite Washington D.C. rapidamente se aperceberá de como as instituições norte-americanas assumem um papel quase religioso na mentalidade de qualquer norte-americano. É certo que todas as instituições, seja de Estados republicanos, monarquias ou de qualquer outro regime, são sempre peça fundamental no estabelecimento de uma determinada moral popular. Dificilmente se poderá discutir outra coisa. Mas, nos Estados Unidos e naquela cidade em particular, isto sente-se de forma muito intensa.
Os edifícios grandiosos de D.C. são todos eles monumentos políticos, homenagens aos pais fundadores ou a grandes presidentes; são o edifício do Congresso ou a Casa Branca, o Tesouro ou o Supremo Tribunal. Existem, é certo, igrejas e basílicas cuja dimensão mais leve e recatada (com a exceção da Catedral Nacional, essa longe do centro) se deve talvez mais ao Protestantismo do que a outra coisa qualquer. De todo o modo, fica muito claro a quem visita D.C. que as instituições importam. Importam muito.
Este ponto é levado ao extremo quando falamos da Constituição dos Estados Unidos. Desde logo porque é muito comum ouvir americanos a citar artigos da Constituição de cor, a gritar os seus direitos de acordo com a Emenda X ou simplesmente a ‘plead the fifth’, ao contrário do comum distanciamento europeu face aos seus documentos jurídicos. Há uma aproximação do americano médio à Constituição que nos faz lembrar os tempos em que versículos da Bíblia permeavam o discurso comum e parábolas ilustravam o dia a dia dos concidadãos europeus.
Mas o seu caráter sacrossanto fica evidente sobretudo a quem visita o local onde se encontra em exposição a santíssima Trindade legislativa – a Declaração da Independência dos Estados Unidos, a Constituição e a Bill of Rights – no museu dos National Archives. Todo o segundo piso daquele edifício emana religiosidade. As pessoas, ao entrarem, baixam as vozes, andam mais devagar, sentem-se engolidas pelo peso institucional. Sente-se naquela sala circular aquilo que muitos crentes sentem ao entrar numa igreja, numa sinagoga, numa mesquita ou em qualquer outro lugar sagrado. Ao fundo surge uma porta massiva, como as que guardavam os templos de Atena na Acrópole ou da Concórdia, em Agrigento. Atrás dessa porta, circundada por duas bandeiras nacionais perfeitamente simétricas, entre outras duas gigantes colunas de mármore de estilo coríntio, encontramos finalmente os Documentos que fundaram a nação.
Ao desviarmos o olhar dos documentos somos abraçados por imagens da Conceção, com dois quadros gigantes dos homens (mesmo só homens a julgar pelo quadro) que tornariam teoria em Liberdade naquele ano de 1776. Ali encontramos as faces de todos aqueles que se reuniram no Congresso Continental e que, no momento constituinte, decidiram que futuro queriam para o seu povo. E ficamos comovidos por todo o heroísmo, pelas dificuldades e pela beleza dos princípios. É difícil sequer imaginar o que um norte-americano sentirá ao olhar aqueles documentos quando até estrangeiros são tocados desta forma.
Saímos do edifício a querer fazer coisas grandes, mudar o país, lutar pela Liberdade.
Não é possível entender o que se passou no passado dia 6 de janeiro sem entender isto. Ao revermos as imagens absolutamente inacreditáveis de uma insurreição popular que invade o Congresso norte-americano, ficamos incrédulos ao pensar que uma coisa daquelas possa ser sequer possível nos EUA.
Ficamos estarrecidos ao ver multidões enraivecidas porque lhes tiraram a Constituição, a gritarem que aquela casa não é dos políticos, mas é deles, que sabem os seus direitos e que ninguém os vai roubar. É fácil ver como alguém, com intenções destrutivas e egoísticas, poderá manipular estes sentimentos de injustiça divina a seu favor. Porque quando o faz não está apenas a estimular o fanatismo político na cidadã ou cidadão americano médio; está a mexer com o mais profundo sentimento religioso do seu ser, a forçar as reações químicas clássicas do fanatismo religioso que leva pessoas a cruzadas ou a jihads.
A Constituição dos EUA não é só um documento fundador e o norte moral daquele país. É a sua base religiosa, uma artificial substituição da idolatria religiosa pela idolatria constitucional, excecionalmente bem executada por Thomas Jefferson. Ao direito divino dos monarcas absolutos britânicos, Jefferson opôs o jusnaturalismo de Locke e, dessa forma, proclamou o povo americano como Deus. Se a Constituição repete apenas aquilo que nos foi já dado por Deus, então como é que representantes humanos de um Congresso Democrata ousam retirar o que é nosso por direito natural? É este o pensamento que nos é tão alienígena, tão longínquo, mas que levou muitas pessoas normais a tentar executar um golpe de Estado.
Não há justificação para a violência e destruição que vimos acontecer naquele dia 6 de janeiro. É imperativo que todos os suspeitos sejam detidos e julgados e que a Justiça prevaleça. Mas não podemos deixar de nos colocar as perguntas difíceis, aquelas cujas respostas nos podem ajudar a ultrapassar de uma vez por todas o bipolarismo que a Democracia enfrenta atualmente em todas as partes do Mundo.
Porque é que as pessoas estão descontentes?
Porque é que a nossa Democracia já não é suficiente?
O que podemos fazer para voltar a ganhar a confiança dos cidadãos?
Como democratas e republicanos, temos de ser capazes de responder a estas questões e ter resposta para os problemas e ansiedades dos nossos cidadãos.
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