Donald Trump é o presidente que finalmente tornou realidade todos os preconceitos dos anti-norte-americanos, daqueles que só vêem os Estados Unidos como a materialização do Mal – esquecendo-se, ou não querendo saber, que o país foi feito pelos excluídos de todos os outros países, que se juntaram por falta de outra opção, e que ainda não têm uma identidade comum.
(Pode dizer-se “um português,” que logo se conhecem as suas características comuns, mas não se pode dizer um norte-americano, porque são de muitas maneiras.)
Então esquecem-se, ou não querem saber, que é o país em que a polícia mata facilmente um negro, mas que elegeu um negro Presidente; que é um país com centenas de universidades, muitas de ponta, mas onde a teoria do criacionismo tem estatuto legal; que foi à Lua e não tem Segurança Social. E por aí fora.
Tudo isto para dizer que Trump não é os Estados Unidos e, como todos os dirigentes, é o produto e não o produtor. Há que tentar o impossível: analisá-lo sobriamente.
Analisá-lo é fácil, uma vez que, não só tem uma exposição ímpar do Museu Vivo da Terra, como se expõe minuciosamente através da tecnologia universal-instantânea do Twitter.
Sobriamente, é mais difícil. Não sei se consigo, mas vou tentar: apenas relatar as notícias trumpianas desta semana, sem meter adjectivos.
Os Estados Unidos estão a passar por um mau bocado. A perder o poderio universal (ideológico e material) para a China – já toda a gente viu isto, das grandes cabeças pensantes às almas mais simples.
Contudo, apesar do acordo internacional quanto a esta decadência, ela não é vista da mesma maneira por toda a gente. Na verdade, ninguém pode prever como será uma decadência antes de ela se desenrolar à sua frente. E os pormenores são sempre constrangedores, mesmo para os desafectos. Não é bonito ver uma águia perder as asas – ou, pior, atrapalhar-se com elas.
Então, esta semana correu mal para o Ainda Homem Mais Poderoso do Mundo. Parece até uma tragédia shakespeariana adaptada ao século XXI. É preciso não esquecer que para ele a única coisa que interessa, tal como para o coronavírus, é reproduzir-se – multiplicar os quatro anos o maior número de vezes possível. (Sim, é inconstitucional, mas para ele a Constituição é sempre contornável...)
Primeiro, como pano de fundo, a peste. Nenhum país a previu, mas reagiram de modos diferentes, e não é excessivo dizer que a pior reacção foi a da Administração Trump, com excepção, talvez, da de Bolsonaro. (São os números, os Estados Unidos estão à frente com mais infectados e mortos, até serem, num futuro próximo, ultrapassados pelo Brasil.) A Covid-19, que é negada por alguns radicais e aprendizes de feiticeiro, nunca entrou verdadeiramente na realidade trumpiana. Donald Trump começou por negar, depois disse que desapareceria com a Primavera, a seguir acusou os chineses de o terem apanhado de surpresa, mas considera que deu uma resposta "wonderful" e, finalmente, esta semana, perante a persistência dos números, que até subiram em mais de 20 estados, resolveu passar a ignorar o assunto. Disse na Fox News, citado pela Bloomberg: “Estamos muito próximos duma vacina e muito próximos dum remédio, um remédio realmente bom. Mas, mesmo sem isso, nem gosto de falar no assunto, porque [a epidemia] está a desaparecer, vai continuar a desaparecer (...)”.
A epidemia, para lá da centena de milhares de mortos e dos dois milhões de infectados, parou a economia do país, causou o maior desemprego desde a Grande Depressão de 1929, e confinou milhões de pessoas. Isto quando estamos a cinco meses das eleições presidenciais. Por mais que a culpa seja dos chineses e a resposta do Presidente "Wonderful", o facto é que os votantes estão descoroçoados. A sua fiel base de 40%, que topa tudo, está a diminuir nitidamente. Os indecisos e os hesitantes que, como se sabe, decidem todas as eleições, mostram-se cada vez mais decididos perante a hesitação de quem os devia orientar.
Em cima desta insistente chatice, que não há maneira de fazer “puf” e desaparecer, aconteceu o infeliz caso de o assassinato de um negro pela polícia, facto bastante corriqueiro, ter sido gravado em grande pormenor por várias câmaras, provocando uma agitação social sem precedentes desde de 1968, que logo a seguir se transformou nos mais abrangentes protestos de que há memória, não só em dezenas de cidades norte-americanas, mas um pouco por todo o mundo. O movimento Black Lives Matter, que nasceu em 2013 e teve altos de baixos, de repente tornou-se numa corrente universal imparável.
Trump, que nunca esteve à vontade com as reivindicações dos negros e sempre mostrou simpatia pelos supremacistas brancos e pela “lei e ordem”, reagiu da pior maneira, ameaçando pôr o Exército na rua contra os “desordeiros” – para a seguir se ver desautorizado pelas próprias Forças Armadas, que nos Estados Unidos têm a tradição institucional de não se meter em política. Há mesmo uma lei, a “posse comitatus”, de 1878, que as proíbe expressamente de usar força militar contra a população civil.
O problema está longe de resolvido e, muito provavelmente, como noutras ocasiões semelhantes, não tem solução, uma vez que se trata de uma atitude que vem do tempo da escravatura e parece fazer parte da cultura intrínseca do país. O facto é que Trump nem sequer teve o cuidado de disfarçar o problema com os habituais discursos da praxe, e acaba de promulgar uma fraquíssima e diluída reforma policial que será ainda mais enfraquecida no Senado Republicano, chefiado pelo inacreditável fariseu Mitch McConnell, que já anunciou que não cederá um milímetro ao um projecto mais incisivo dos democratas.
Com tudo isto a ferver, a Câmara dos Representantes marcou para a próxima semana a discussão de uma lei para tornar o Distrito de Columbia (o território onde está Washington) o 51.º Estado americano. O tema, que não vinha à baila desde 1993, não é de todo pacífico nem apenas geográfico. Se se tornar um Estado, Columbia irá fornecer mais dois senadores, certamente democratas, e ganhará várias regalias que os republicanos não têm interesse em conceder à capital. Além disso, a presidente da Câmara de Washington é presentemente uma negra, Muriel Bower, que, para resumir a sua posição, mandou escrever “Black Lives Matter” a amarelo, em letras garrafais (que se vêem do espaço) na avenida por onde Trump passa todos os dias quando sai da Casa Branca. Também sobre esta lei, Mitch já deu o seu veredicto: “Enquanto eu for o líder da maioria no Senado, nada disto vai a lado nenhum.”
Parece que chega, para uma semana agitada. Mas não chega.
Foi anunciada pela prestigiada editora Simon & Schuster a publicação de dois livros sobre Trump que prometem ser ainda mais demolidores do que as dezenas de livros demolidores que saíram sobre o Presidente. Poder-se-ia pensar que, neste capítulo, não é possível revelar nada de pior do que já foi revelado por jornalistas de investigação, ex-funcionários da Casa Branca e especialistas políticos; mas o pior é sempre possível, como se diz em ciências sociais.
O primeiro livro, "The Room Where It Happened" [“O Gabinete onde tudo aconteceu”, numa tradução livre], é da autoria de John Bolton, que foi o terceiro assessor de Segurança Nacional de Trump, durante 17 meses, entre 2018 e 2019.
Bolton é uma figura controversa, agressiva e nacionalista. Subiu nas presidências de Ronald Reagan e George W. Bush, tornando-se com este último Embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas, órgão que detestava. Tem sido, ao longo dos anos, um dos mais violentos defensores duma política externa linha-dura, a favor de atacar a Coreia do Norte e o Irão. Parecia perfeitamente enquadrado dentro das ideias extremas de Trump, mas na realidade são dois nacionalistas diferentes: o Presidente quer retirar os Estados Unidos da arena internacional, Bolton quer interferir em toda a parte. Enquanto assessor, liquidou o tratado nuclear com o Irão e o das Armas Nucleares de Médio Alcance com a Rússia. E defendia o reforço da NATO, que Trump considera uma despesa inútil.
Nunca deixando de dar a sua opinião a um Presidente que não gosta de ouvir opiniões, deixou claro que não gostava do “namoro” do seu chefe com Kim Jong-un e com Vladimir Putin. Finalmente, as posições dos dois tornaram-se irreconciliáveis e demitiu-se em Setembro do ano passado. Trump diz que foi ele que o demitiu — por Twitter, é claro.
Durante o inquérito que levaria à tentativa de impugnação de Trump, manteve-se calado, recusando-se a depor na Comissão da Câmara dos Representantes.
Parecia que não queria trair a confiança que tivera com o Presidente, mesmo discordando dele. Mas depois, não se sabe porquê, mudou de ideias.
"The Room Where It Happened" será publicado na próxima terça-feira, mas vários órgãos da comunicação social, como a CNN e o The New York Times já o têm. O que ele conta é extremamente prejudicial para o ex-chefe, primeiro porque é o mais próximo colaborador de Trump a falar, e depois pelo que diz.
Bolton escreve que Trump pediu a Xi Jinping que o ajudasse a vencer as eleições presidenciais de 2020, pois é importante para os agricultores norte-americanos, uma das suas bases mais fiéis, o aumento das exportações de soja para a China. Esta franqueza, ou fraqueza, perante o “inimigo”, deixou Bolton particularmente furioso.
Também conta que o Presidente elogiou o internamento em campos de concentração dos muçulmanos Uighur, desabafou que alguns jornalistas deviam ser “executados” e considerou que seria “fixe” invadir a Venezuela.
Segundo ele, as investigações sobre a impugnação de Trump, especialmente as do Procurador Especial Müller, deviam ter averiguado não apenas a Ucrânia, mas outros episódios em que usou negociações comerciais e investigações criminais para o favorecer politicamente. E descreve episódios concretos em que Trump pediu favores pessoais a ditadores que via favoravelmente, como Recep Erdogan e o já citado Xi Jinping.
Além disso, segundo Bolton, ignorava as situações mais básicas da política internacional, como quando perguntou se o Reino Unido tem armas nucleares ou se a Finlândia faz parte da Rússia.
Os advogados de Trump e o Ministro da Justiça, William Barr, estão a tentar impedir a publicação do livro, mas já vão tarde e têm poucas hipóteses de o conseguir. O argumento seria que Bolton revela segredos de Estado. O Ministério da Presidência (State Department, equivalente ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros) nada disse sobre o assunto, mas Trump não resistiu a twittar, esta quinta-feira:
“O livro do maluco (wacko) John Bolton, considerado “excessivamente chato” pelo New York Times, só tem mentiras e histórias falsas. Só falava bem de mim até ao dia em que o despedi. Um doido chato e desiludido que só queria fazer guerras. Nunca percebia nada, foi ostracizado e felizmente descartado. Um parvalhão (dope)!”
O outro livro que vai sair é da autoria de Mary Trump, filha do irmão mais velho de Donald, Fred Trump Jr., que morreu em 1981 de alcoolismo, depois de se ter afastado dos negócios da família. Mary é psicóloga e, segundo ela própria revelou, foi quem contou ao The New York Times as trapalhadas fiscais do tio. O livro tem um nome longo e sugestivo: "Too much and never enough: How My Family Created the World’s Most Dangerous Man" [“Demais nunca é demais: Como a minha família criou o homem mais perigoso do mundo”, numa tradução livre].
Segundo o The Guardian, o livro revela o clima tóxico que existia na família e que está na origem da sua visão distorcida do mundo.
Na informação divulgada pela Simon & Schuster, Mary resume a obra como “um pesadelo de traumas, relações destrutivas e uma mistura de negligência e abuso", que explica o funcionamento íntimo "duma das famílias mais poderosas e disfuncionais do mundo". Os advogados de Trump também estão a tentar proibir esta publicação, o que será ainda mais difícil, uma vez que não poderão alegar quebra de “segredos de Estado”.
Finalmente, Trump sofreu duas derrotas no Supremo Tribunal de Justiça, apesar de este ter uma maioria de conselheiros conservadores. A primeira foi confirmar a impossibilidade de um empregador recusar dar trabalho a uma pessoa por ser LBGTQ. Noutra decisão, o tribunal manteve que os menores que entraram com os pais ilegalmente nos Estados Unidos e depois cresceram e se tornaram cidadãos “normais” – com trabalho e família – não podem ser deportados. O programa que lhes dava essa garantia, o DACA (Deferred Action for Childhood Arrivals) foi instituído por Obama e foi sempre um cavalo de batalha de Trump.
Claro que estas derrotas jurídicas têm um valor apenas simbólico; nada que se compare com os casos substantivos da Covid-19 e a agitação civil do movimento Black Lives Matter.
Se não tivéssemos outros interesses, poderíamos escrever todas as semanas um folhetim sobre as aventuras e desventuras do Homem Mais Odiado, perdão, Mais Poderoso do Mundo. Mas até agora nenhuma seria tão humilhante como esta. Ou Deus é justo, ou há mesmo coisas do demo.
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