Quanto é que contam as pequenas coisas? E, quando contam, continuam a ser pequenas? Sei que estas questões, tão próximas dum filosofar adolescente, não são o melhor pingente para se pendurar num artigo de opinião. Mas a minha questão é exactamente essa: será que podemos pegar nas coisas pequenas e assumi-las como gatilhos de opinião? Numa semana em que o país parece querer recuperar laivos de grandeza, será que podemos pensar pequeno?
Sobre cronistas e a aparente pequenez dos assuntos, não consigo contornar (isto não é piada fisionómica) Miguel Esteves Cardoso. Embora ele continue a empolgar muitos leitores com relatos comovidos, ou a procurar relevâncias ignoradas, ou a cavalgar o orgulho nacional — como fez agora escrevendo sobre o salvador, Sobral — a verdade é que há uma larga quantidade de gente para quem é difícil digerir o Esteves Cardoso na sua curteza: seja ela a dos textos diminutos, seja ela a dos diminutivos assuntos. Para qualquer de nós que se fez criatura pensante nos anos 80 e 90, torna-se algo estranho ver uma das figuras mais importantes na definição política contemporânea (tendo em conta que MEC é, por exemplo, um dos 3 ou 4 nomes que mais contribuíram para o desgaste do cavaquismo; os outros serão Paulo Portas e o próprio Aníbal) volta e meia a escrever textos sobre fruta da época ou peixe cozido.
Não era uma caricatura este último exemplo. Dei por mim, há 3 anos, no atascado Satélite da Graça, a indicar para cozerem o peixe que normalmente eu pedia grelhado ou frito. A recomendação tinha-me chegado numa curtíssima crónica do Miguel Esteves Cardoso, daquelas que me faria suspeitar “o MEC ficou sem assunto”, não fosse antes lembrar-me que “o Úria ficou sem comida”. Movido por fome própria e opinião alheia, lá fui para o Satélite pedir peixe cozido. Em miúdo, creio que cheguei a definir o “ser-se adulto” com o “gostar-se de peixe cozido”; agora confirmo que é mesmo pouco mais do que isso.
No país pessimista e em crise de 2014, quem diria que uma crónica a advogar a subtileza do peixe cozido seria aquela que mais mudaria a minha forma de pensar e actuar? Não foram tanto considerações políticas, nem alarmes económicos em artigos de opinião que me cambiaram, foi mesmo o peixe: passei a seguir mais vezes a sugestão gastronómica, mas também a atentar para a importância dos pequenos assuntos, e de como eles nos mudam as histórias.
No rescaldo dos últimos dias, qualquer peixe que não seja um Sobral, um Vitória ou um Bergoglio está condenado a ser arraia miúda. Mas é exactamente esse que vou pôr no prato: um minúsculo peixe açoriano, o pequeno assunto que mais me mudou. Não entendam mal: festejei efusivo o 36.º título nacional do Benfica; também num restaurante, e junto com os meus convivas, perdi o senso de decoro a cada pontuação máxima atribuída ao Sal Sobral, e comemorei desbragadamente a vitória final; só Fátima não me arrancou qualquer festejo (o único milagre no distrito de Leiria em que acredito é o duma santa que lá nasceu, e que há 15 anos me atura).
A pequena história que quero fazer assunto, e o pequeno assunto de que quero que a História se faça, passa-se nos Açores, ilha do Faial, cidade da Horta. Estive lá a dar um concerto com a minha banda na passada sexta-feira e acabámos por ficar mais um par de dias. A contrastar com a forma extremamente calorosa com que nos receberam, os Açores foram a caricatura chuvosa, esbranquiçados pela bruma constante. Não tínhamos intenção de visitar a ilha do Pico, mas a visão esplendorosa da montanha era algo que muito aguardávamos. O denso nevoeiro não se dissipou e, mesmo com o Pico ali em frente, nada chegámos a descortinar para além da parede branca nebulosa.
No sábado, já depois dos festejos com cachecol vermelho erguido, e já depois de nos abraçarmos em torno do Salvador Sobral, tive o melhor momento do dia quando já era noite. A Maria, uma encantadora menina de 10 anos que eu conhecera no dia anterior, veio trazer-me um canudinho branco, cercado por um fio de lã também tão branco quanto a bruma faialense. Disse-me “Eu gostava muito que tivesses visto o Pico, porque é uma das coisas mais bonitas da nossa terra. Mas o tempo não deixou, então fiz-te isto”. Desatei a lã e desenrolei o canudo até se tornar numa folha A3. Lá, a guache, estava uma pintura do Pico a emergir do mar, com um enorme Sol amarelo a ladeá-lo. Foi como se me tivesse também iluminado. Se há uma caricatura açoriana chuvosa, também há outra: a do sítio paradisíaco. O paraíso estava ali a guache, nos pincéis vivaços duma criança de 10 anos e no sorriso pateta dum gajo com 37.
Todas as minhas paredes são demasiado pequenas para esta pintura A3. Vou, por isso, pendurá-la no presente aglomerado de palavras, querendo que se agigante. É uma pequena história, e toda a comoção tresanda a pequeno assunto. Se o nosso optimismo anda feito de grandes canções, grandes golos, grandes retomas económicas, grandes milagres, que lugar terão as pequenas coisas na História que se constrói? Não sei, mas no que depender de mim, o altruísmo, a simpatia, os bons valores no exercício parental, a sensibilidade e a gratidão — tudo morais do meu relato — terão que ser os pequenos fios que desejamos entretecer nos conceitos de grandeza dum povo. Se calhar é altura de afixarmos todas estas histórias a guache para que o mural da História se componha. Assim como eu passei a saborear chernes cozidos, pode ser que passem a saborear este prazer: o de espalhar as pequenas narrações que nos tornam maiores.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
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