
A empresa Colossal Biosciences anunciou na segunda-feira que deu vida com sucesso a Rómulo e Remo, duas crias de seis meses de lobo gigante, criadas através de modificações genéticas derivadas de ADN encontrado em fósseis que datam de há 11.500 a 72.000 anos.
Para tal, foram editados 20 genes de lobo cinzento com este ADN — extraído de um dente e de um crânio — para dar às crias algumas das principais características dos lobos-terríveis. Os embriões modificados foram implantados em cadelas, que deram à luz os animais. Além destes dois lobos, também foi criada uma fêmea, agora com quase três meses, com o nome de Khaleesi, em associação ao mundo de 'A Guerra dos Tronos', onde os lobos gigantes são um dos símbolos.
Mas estes animais são mesmo equivalentes ao lobo-terrível? Maria de Jesus Fernandes, bastonária da Ordem dos Biólogos, explica ao SAPO24 que "a empresa não produziu animais exatamente iguais àquilo que era o lobo pré-histórico, o que fez foi uma edição do código genético".
"A partir de um bocadinho de nada de material genético, conseguiram isolar algum material e depois fazer uma adição, juntando com o atual lobo existente. Portanto, o que está em causa é um organismo geneticamente modificado, cujas características reais nem sequer sabemos muito bem o que são. Por isso, não recuperámos a espécie, não estamos perante o animal pré-histórico".
Além disso, considera que a forma como foi dada a notícia não passou de "uma enorme e bem-sucedida estratégia publicitária da parte da empresa para chamar a atenção para os recursos e para as potencialidades desta ferramenta genética e da possibilidade de mexer nestas matérias, muito mais do que propriamente estarmos perante um animal excecional".
"Por outro lado, reconhecemos o desenvolvimento de um conjunto de ferramentas nos permite à ciência e aos cientistas poderem avançar com algumas áreas que até aqui não estavam ao alcance dos homens". Mas até isso levanta "outro tipo de problemas sérios do ponto de vista ético, de biossegurança e do ponto de vista biológico, ecológico e até social".
Por si só, os lobos criados — e que agora têm cerca de seis meses — não representam "nenhum risco direto", até porque "não vão ser libertados e não têm condições para viver no ambiente atual que temos". "São uma experiência, e nós já tivemos experiências no passado. Fazem parte de mais uma, com a tecnologia mais apurada", nota.
Mesmo assim, trazem consigo "problemas e incertezas, quer genéticas, quer biológicas, do impacto deste tipo de ação".
Para Maria de Jesus Fernandes, "a introdução na natureza de espécies extintas — que no passado foi uma grande tentação de fuga para a frente — pode ter, com certeza, problemas muito complexos e impactos muito grandes ao nível daquilo que é hoje o ecossistema e do que é a biodiversidade".
"Para já, o ambiente que temos hoje não é o mesmo em que esses seres viveram. Todo o ecossistema é distinto, portanto o impacto ecossistémico não está avaliado — teria de ser avaliado caso a caso —, inclusive para o impacto no homem. Os ambientes em que estes grandes canídeos viveram nada tem a ver com aquilo que são os ecossistemas atuais. O equilíbrio do ecossistema, a disponibilidade de alimento, a disponibilidade de espaços, nada disso é igual", aponta.
"Se recuarmos um bocadinho e fizermos um cenário daquilo que poderia ser a Terra nessa altura, basta tirarmos as cidades e as estradas e percebemos que, de facto, o ambiente é outro, a vida é outra", diz ainda.
Nos dias de hoje, "não temos habitat para estes bichos, não temos área do planeta para os colocar. Eles vivem num jardim zoológico — e não precisamos de mais jardins zoológicos".
Estamos preocupados com o lobo pré-histórico quando temos o lobo cinzento ameaçado nos dias de hoje? Ordem dos Biólogos alerta para o 'erro' de perspetiva
A Ordem dos Biólogos, que esteve reunida na quinta-feira em Assembleia Geral, discutiu este tema e, entre os presentes, houve uma questão que foi levantada. "Nós vivemos uma época muito complexa do ponto de vista da perda de biodiversidade. A perda de biodiversidade no mundo, na Europa e em Portugal é uma das principais ameaças com que nos deparamos. Então investimos milhões para tentar trazer de volta algumas espécies, investimos na 'desextinção' de espécies, em vez de investirmos na preservação das espécies atuais que correm risco de extinção?".
"É um erro demasiado grande para não alertarmos para isto. Temos problemas que se nos colocam hoje do ponto de vista das espécies, muitas com elevado risco de ameaça — e entre elas o lobo ibérico, que até já se pode caçar em Espanha, e o lobo cinzento na Europa —, e estamos preocupados com o lobo pré-histórico?", questiona a bastonária.
Por isso, defende que há um "contrassenso de valores, de lógicas" e que é preciso manter o foco para se "perceber o impulso que pode haver por outras espécies, por alguns mitos ou lendas" e não perder a noção de que "a prioridade hoje deveria ser outra".
Questionada sobre se estas técnicas poderiam ser usadas para ajudar as espécies que estão em vias de extinção em Portugal, Maria de Jesus Fernandes defende que "neste momento não é necessário ainda irmos tão longe", já que "há um conjunto de espécies que estão em elevado risco, mas ainda cá estão".
"Poderíamos chegar aí e, se chegarmos, há que avaliar de facto se não deveríamos usar os conhecimentos da ciência a esse nível para poder ajudar a trazer de volta algumas espécies em declínio, a não permitir que se chegasse a um estado iminente de extinção", frisa.
Para já, apenas é necessário "aplicar e ter planos estratégicos, planos de ação, para essas espécies. Há que ter dinheiro e coragem política para os pôr em ação. Eu sei que não dá tanta parangona de jornal, mas deveria ser essa a nossa aposta, porque se nós conseguíssemos direcionar uma parte dos recursos para a conservação das espécies atuais que estão ameaçadas ou que são potencialmente ameaçadas, o impacto ecológico e social seria imediato e imensurável".
O perigo do poder em más mãos
Outro desafio que surge destas experiências implica a questão da "viabilidade dos animais" e, além disso, do ponto de vista ético, implica pensar "naquilo que pode ser a manipulação genética no futuro".
"E isso em más mãos, em más condições, com opções políticas, pode ser um problema para a natureza", ressalva.
Para a bióloga, "vale a pena haver um debate, uma abordagem ampla e envolvendo vários grupos da sociedade — a comunidade científica, mas também os pensadores, os filósofos, os políticos — sobre estas questões, porque são questões sérias que se colocam".
Por outro lado, diz, é preciso ter noção de que "aquilo que é publicitado, aquilo que vem à luz do dia, são de facto alguns pequenos sucessos, que não traduzem mais do que isso".
"São pequenos sucessos que jogam, por exemplo, com a continuação de haver financiamentos para que a empresa continue a poder trabalhar e ter esta atividade, que obviamente é válida, mas, por exemplo, estaríamos muito longe de trazer algum mamute de volta", defende.
"E depois também se pergunta: trazer um mamute de volta para quê? Qual é a relevância disso face àquilo que é hoje o ecossistema terrestre? Será que vale a pena? Será que faz sentido recriar e avançar nesta manipulação genética para a 'desextinção' de espécies simbólicas, sejam elas grandes ou pequenas?".
"Quais é que são os benefícios para além deste show-off e para além de alguns avanços tecnológicos instrumentais que estas práticas ajudam? Quais é que são os benefícios de investimentos destes?", acrescenta. "De facto, são questões muito controversas, do ponto de vista científico. É evidente que se existe muita gente apologista e que vê com muito bons olhos a utilização das técnicas de manipulação genética nestas matérias, mas também existem muitos detratores e temos de ver sempre os dois posicionamentos".
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