Cristina tinha sido presidente duas vezes de 2007 a 2015, e não se pode recandidatar pela limitação de mandatos. Antes disso, de 2003 a 2007, foi a primeira-dama do presidente Néstor Kirchner que, também impedido constitucionalmente de exercer um terceiro mandato, decidiu governar através da mulher. Viria a morrer em 2010. Nestor, tal como Cristina, era peronista. Desde a queda da ditadura militar, em 1983, a Argentina apostou na promessa peronista, quase continuamente. Macri, que agora sai, foi uma tentativa quase desesperada e atípica de resolver os problemas endémicos do país, com uma receita neoliberal – sem sucesso. O que é interessante é que a política argentina do pós-guerra não andou entre a tradicional disputa direita-esquerda; ou foi de direita, até de extrema-direita (três ditaduras), ou peronista. Ora o peronismo é uma filosofia que tem sido definida de esquerda e de direita, conforme os olhos de quem a vê, mas que é mais propriamente um populismo ditatorial-socialista, único deste país, na contracorrente das tendências ocidentais. Como se verá adiante.
No seu discurso de vitória, propositadamente feito num bairro operário de Buenos Aires, La Chacarita, Fernández fez as promessas habituais da ocasião: “Vamos empenhar os maiores esforços para acabar com o sofrimento de todos os argentinos. Vamos ser a Argentina que merecemos ser!” Belas palavras, cheias de esperança, numa altura em que a situação é de desespero. Segundo a revista política francesa “Le vent se lève”, citando fontes internacionais, 40% dos argentinos vivem abaixo do limiar de pobreza, a inflação subiu 54% nos últimos 12 meses e 237% desde que Macri assumiu a presidência, em 2015.
Mas Macri também tinha prometido melhorar a situação, depois de décadas de governos peronistas. A sua receita era o neoliberalismo e a muleta, o malfadado FMI/Lagarde que, evidentemente, não olha a efeitos colaterais. Muitos países conhecem as purgas do FMI, que os argentinos já tinham amargado em intervenções passadas: a receita não paga a dívida externa e submete os desabonados a uma dieta debilitante. Contudo, em 2015 o país também estava em crise profunda e, uma vez que as fórmulas peronistas não tinham funcionado, voltou à receita neoliberal que não tinha dado resultado com Carlos Menem, em 1989-99.
Ou seja, para resumir uma longa história, a Argentina, um país que enriqueceu durante a II Guerra Mundial a vender carne a todos os beligerantes, desde 1945 só conheceu duas situações económicas: crise e bancarrota. Alternaram-se ditaduras militares com governos socialistas, sem se conseguir resolver a equação do desenvolvimento. E, entre as ditaduras e os socialistas, houve – e há – o peronismo, esse fenómeno tão único como o tango de Buenos Aires. Porque no peronismo há muito de ditadura e muito de socialismo, mais da primeira do que do segundo, mas em doses suficientes para aliciar, criar ódios, e, sobretudo, baralhar as definições estabelecidas.
Fernández, agora eleito, ex-chefe de Gabinete de Néstor Kirchner, chegou-se à frente por vontade de Cristina, não fossem os eleitores lembrar-se do desastre do seu governo. O facto é que Néstor conseguiu um período inédito de menor crise, e até enfrentou o FMI. Se isso se deve a Fernández, não se sabe. Mas sabe-se que Cristina, ao suceder ao marido, geriu as contas da pior maneira, com um défice tamanho e uma inflação tal que, segundo o “The Economist”, o governo deixou de medi-la.
Acrescenta a revista britânica (conservadora), que não se sabe que tipo de peronismo irá governar; se o “bom”, de Néstor, se o “mau”, de Cristina. Para já, os candidatos a ministro da Economia, um cargo mais fundamental que a própria presidência, são veteranos dos governos dela, embora tenham reputações opostas. Com a dívida externa próxima dos 90% do PIB, o ministro escolhido não terá remédio senão apertar o cinto dos “descamisados”, precisamente a base permanente do peronismo. O peso desvalorizou-se 25% ao ser conhecido o resultado das eleições e Macri, que se reuniu imediatamente com Fernández para fazer uma transição pacífica, limitou as compras de divisas a 200 dólares por mês. O dólar, como é típico nos países com inflação galopante, é o último recurso da classe média para proteger as suas eventuais economias.
Mas o que é afinal o peronismo? Historicamente, começou com Juan Perón, em 1946, e foi elevado a culto popular pelo carisma extraordinário da sua mulher, Evita.
Perón, um militar, foi subindo pela escada institucional até ser eleito por dois mandatos consecutivos, deposto em 1955, e depois reeleito em 1973-74. Politicamente, Perón era linha dura, um ditador; mas o seu poder apoiava-se nas classes mais baixas e nos sindicatos, enquanto continha os ricos com nacionalizações e incómodos. O discurso era nacionalista e demagógico. Evita permitia-se banhos de povo, mesmo nos anos em que o marido não conseguia o milagre de fazer crescer a economia e satisfazer as ânsias populares. Economicamente, o peronismo também se equilibrava entre medidas do receituário socialista e os apoios aos industriais e pecuaristas.
Internacionalmente, Perón dava-se bem com os ditadores – Evita levou o seu carisma a Espanha, recebida com pompa por Franco – e era anti-comunista, alinhando com os Estados Unidos na Guerra Fria, mas sem se comprometer de mais com uns e outros.
O facto é que esta receita híbrida, que desagradava tanto à esquerda como à direita, criou uma esperança duradoura na classe trabalhadora, esperança essa que se mantém até hoje e ultrapassa fórmulas governativas. O peronismo é um estado de espírito, com uma governação que ziguezagueia pragmaticamente, sem conseguir eficiência.
Ocasionalmente, quando o mau fica pior, os eleitores argentinos fazem uma experiência neoliberal, a contra-gosto, para voltar ao peronismo no mandato seguinte.
Nas manifestações, abundantes ao longo de todos estes anos de amargura, as pessoas, novas e velhas, empunham fotografias de Evita como se fosse um ícone – como se a atracção que ela ainda exerce pudesse salvar o país de mais uma catástrofe.
As perspectivas não são boas – mas nunca foram, e a esperança é a última que morre.
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