Continuo vicioso. Não retomo o tema para uma errata, ou exercícios de contrição.  O que vou fazer é explorar esta falha de personalidade - aquela que faz com que muitos de nós (mesmo os que, como eu, repudiam qualquer forma de assédio sexual) teçam considerações onde mais rapidamente calçam os sapatos largos do poderoso, e raras vezes os chanatos apertados do desamparado. Porque acontecerá isso? Seja pelo lado justiceiro, seja pelo lado empático, continuamos a ver toda esta história como um escândalo de predadores famosos, nem tanto como um suplício das presas.

Também não vou retomar o assunto pelo ângulo em que actualmente fervilha. Neste momento, creio que a maior discussão se prende com as obras protagonizadas ou produzidas pelos abusadores. O que fazer? Continuar a ver? Parar de ver? Apagar da memória? Tirar da lista das preferências? Censurar quem não se abstém de gostar? A culpabilização de uma obra é interessante até porque, em consequência, a discussão vai directa à culpabilização do espectador. Não falarei sobre este aspecto porque tenho tanta certeza das minhas convicções que, suspeito, talvez uma confiança cega me esteja a induzir em erro.

Vou voltar ao tema com esta fraqueza anunciada: na última semana redobrou-se o meu interesse nestes casos porque implicaram uma figura do meu interesse. Weinstein era um produtor, homem de bastidores, fora dos ecrãs, logo uma figura obscura fácil de desapreciar (até pelo aspecto reptilíneo que nos amplifica a repulsa de cada história). O figurão que se seguiu foi Kevin Spacey, e estou certo que aqui se cruzaram muitos dedos em figas para que se tratasse de um boato infundamentado. Pelo enorme talento de Spacey, e por todas as personagens que dele recordamos, a nossa sensibilidade e as nossas memórias pareciam ficar implicadas.

As denúncias eram, afinal, credíveis. O actor era mesmo um vilão na vida real, e talvez não nos tenha custado assim tanto essa ideia porque já estávamos habituados a que ele fosse um vilão na ficção. Nos últimos anos, o sucesso de Spacey atingiu o pináculo na personagem de Frank Underwood, um homem muito poderoso, imoral e capaz de vergar tudo e todos a seu bel prazer. É a personagem que odiamos, mas por quem torcemos; a personagem que adoramos detestar. Pela imoralidade e abuso de poder, o popular Kevin Spacey pode agora ver-se como uma miniatura do popular Frank Underwood, e talvez se tenha tornado mais simples detestar quem adorávamos, mais simples deixarmos de torcer pelo homem real.

O actor ainda aumentou a facilidade com que nos desapegamos dele. Bastou escrever um comunicado, um danado dum comunicado palerma. Assumiu a homossexualidade naquela que foi a mais denunciada manobra de diversão. A jogada que ele tentava esconder soava a um claro “Agora eu sou uma minoria oprimida, esqueçam tudo e fiquem do meu lado”. Que se lixe o Spacey. A partir daqui era só esperar que a lista dos crápulas não atingisse nenhum daqueles de quem gostamos, como por exemplo, sei lá...o Louis C.K..

Talvez o meu grupo de amigos seja peculiar, mas eles corroboram-me na maior desilusão deste chorrilho de escândalos: foi com o Louis C.K.. Ninguém queria que o velho Louie fosse um dos patifes pervertidos - o que não deixa de ser curioso, tendo em conta que ele era quem mais aberta e artisticamente assumia a pulsão para a perversão. Há aqui um contra-senso, porque aquilo que nos faz gostar de C.K. talvez seja o génio ao serviço da confissão, ao serviço do erro e das falhas profundas – exactamente aquilo que nos deve fazer detestá-lo neste momento.

Sobretudo no stand-up e na série semi-autobiográfica, Louie cativou-nos com a vertente patética (e pateta) da sua personalidade. Pode muito bem ter revolucionado a comédia pelo lado menos esperado: o duma comiseração degenerada. As observações e confissões que tecia em palco ou no ecrã, mesmo as mais debochadas (mesmo as que se assemelhavam às baixarias de que é acusado na vida real) eram acobertadas pela inteligência de C.K., pela graça e, sobretudo, pela brutal honestidade que nos fazia inocentá-lo. Louie não criava empatia por se assumir como um qualquer de nós, mas antes por se assumir como o pior de nós todos. A vergonha alheia deixava de ser alheia, e a exposição duma faceta sórdida e dissoluta tornava-se admirável.

Nessa indistinção entre persona real e fictícia, fica mais custoso censurar quem abertamente sempre se revelou censurável. Por isso custou tanto a notícia inesperada dum delito esperado. Como já não podíamos torcer para que Louis C.K. ficasse fora deste rol de pulhas, pelo menos eu desejei que ele se chegasse à frente, assumisse e pedisse perdão. Foi exactamente isso que Louie me pareceu fazer com o comunicado que usou para responder às acusações. “Ao menos chegou-se à frente e admitiu sem rodeios”, pensei eu e alguns amigos com quem discuti o assunto. Mas, entretanto, fui lendo e aceitando algumas reacções iradas ao comunicado, acusando C.K. de não estar a pedir desculpas, ou de vaguear em auto-elogio.

Na última releitura que fiz às palavras de Louis regressei ao benefício da dúvida. Confesso que vejo lá mais do que muitos lhe querem dar crédito: vejo arrependimento detalhado, um evidente veículo de contrição. Se o pedido de desculpas é apenas implícito, não deixa de ser óbvio. Sinceramente, não estou a lembrar-me do que mais poderia ele colocar ali, a não ser talvez a cabeça decapitada. Exigir sangue e vetar qualquer hipótese de reabilitação parece-me uma cultura de ódio, e uma via tão sensata para acabar com o assédio sexual como os métodos de Duterte para acabar com o narcotráfico (não falei em eficácia, falei em sensatez).

Continuo a passear nos sapatos largos do agressor. É um vício cultural, aumentado pelo facto de tudo saber sobre o onanista inoportuno, e nada saber sobre a parte ofendida. Estou distante daquelas mulheres por estupidez crónica, mas também por natureza mediática; a minha solidariedade com elas, que é total, transforma-se em total retórica. Por outro lado, dada a minha proximidade com a obra do ofensor, até a condená-lo pareço solidário. Não se enganem; mesmo agora que, em parte, defendi o comunicado do Louis C.K., não estive nunca a louvá-lo. A fasquia jamais se nivelará pelo Kevin Spacey, e a reacção do Louie foi o mínimo dos mínimos, um passo curto no trajecto de remissão.

Ainda sobre o comunicado, há uma toada que reprovo por completo. Existe um leve gracejo que C.K. avança no início (talvez por defeito profissional) e que justamente azedou algumas opiniões. O comediante notabilizou-se ao trazer a crueza da vida real para a comédia, mas agora que arrisca trazer a crueza da comédia para a vida real, arrisca-se a não ter piada.

Seguindo uma ideia de há pouco, recordo que estamos a conhecer fraquezas genuínas do Louis C.K. que, pela ficção, já conhecíamos. Começa a tornar-se nítido o quanto ele usava o seu trabalho para esconder os defeitos nos sítios mais visíveis - com a verdade nos enganar e com a ficção nos convencer. Isto é o sonho de qualquer historiador de Arte, que tem um dia em cheio quando, nas obras, consegue perceber os defeitos e as pulsões do criador. Talvez daqui a 100 anos a comédia seja tida por pop art, e CK como um artista de enorme interesse académico, tão devasso como qualquer grande pintor do período da Arte moderna. Que se apresse então agora a justiça, que os embargos não duram para sempre.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Aquele polémico episódio antigo do Louie com os olhos da polémica recente.

Aquele polémico Louie com os olhos da amizade.