
Sempre fui fascinado com a União Europeia. Cresci interessado em aprender tudo acerca desta estranha união. Afinal, parece daquelas ideias utópicas que nunca se realizariam, jamais veriam a luz do dia neste mundo cruel. Talvez seja a História e o rol de horrores nela inscritos que nos traumatiza, como rafeiros abusados e abandonados, incapazes de voltar a entrar num carro. Bem, se depois da Segunda Guerra Mundial todos os europeus tivessem ficado traumatizados, como seria compreensível, nunca teríamos embarcado nesta magnífica viagem. Sem grandes motivos históricos para acreditar no seu sucesso, pioneiros como Robert Schuman, Winston Churchill, François Mitterrand e Marga Klompé (entre muitos outros) defenderam e contribuíram para a construção de uma Europa unida, porque o momento dificílimo que atravessaram assim o exigiu, mas sobretudo porque acreditaram ser o caminho mais correto a seguir. É um modus operandi estranhíssimo: onde é que já se viu fazer política baseada em valores e princípios, e não apenas uma sequência de transações oportunistas em bom modo realpolitik? Há gente que não percebe mesmo nada de política e da arte de fazer negócios…
Além de mergulhar em livros de História, o que mais pode um jovem europeísta fazer para se entreter? Jogos de estratégia, pois claro! Entre os quais, uma série cujo título espero encontrar nos futuros livros de História para descrever as próximas décadas: “Europa Universalis”. Nestes jogos, somos convidados a assumir o papel de líderes, controlando nações inteiras e os seus destinos no que toca a defesa, economia e diplomacia de modo a alcançar um determinado objetivo que, dependo do jogo em questão, pode passar pelo domínio mundial. Ora, após acostumar-me a este tipo de jogos e às melhores estratégias para os mesmos, devem imaginar qual foi o meu espanto ao acompanhar a União Europeia do meu tempo (pós-Tratado de Lisboa). O bloco europeu, repleto de potencial, que conciliou o que parecia inconciliável, caía em erros básicos que qualquer jogador novato consegue identificar e evitar: importava praticamente toda a energia que consumia de países (como a Rússia) com valores totalmente diferentes; necessitava de unanimidades pouco realistas em decisões urgentes e deixava a sua defesa nas mãos dos Estados Unidos, sacrificando para todos os efeitos a sua soberania. Isto sempre me deixou perplexo, mas cheguei a uma conclusão: a União Europeia recusava-se a jogar. Talvez porque dominação global é um objetivo eticamente reprovável, digno de vilão de desenhos animados. Quiçá, porque a construção da União é um processo de extrema complexidade que ainda está em curso e só jogaria no final deste processo. Porventura, por mero conformismo e puro desinteresse… No entanto, a União Europeia, de facto, não precisa de ser o império que domina o planeta, não necessita de ganhar, só não pode deixar é que mais alguém o faça! E ainda vai a tempo, porque não podem confundir quem se recusa a jogar, com quem está condenado à derrota!
Pesa embora tenha alcançado verdadeiros milagres, como a paz duradoura na Europa, o espaço Schengen, o mercado único e a moeda única, muitos ainda duvidam da viabilidade do projeto europeu. Nem temos noção de todas as bênçãos que temos enquanto europeus. Existem muitas críticas a fazer e ainda muita margem para melhorar, contudo, acho que a União Europeia é vítima de uma tremenda injustiça quando é constantemente posta em causa. Reparem como navegou uma panóplia das mais variadas crises, com algum sofrimento é inegável, mas saindo sempre por cima e mais forte de cada uma delas. A crise financeira e das dívidas soberanas em 2008, onde aprendemos a lição do balanço financeiro. A crise do Brexit desde 2016, que mostrou que a saída do bloco é extremamente negativa para o país dissidente. A pandemia do Covid em 2020, só ultrapassada através da cooperação europeia. Finalmente a invasão da Ucrânia por uma Rússia imperialista, que se arrasta até aos dias de hoje, com a agravante de ter nas suas fileiras um verdadeiro agente infiltrado em Orbán. Na verdade, praticamente todos os desafios imagináveis foram aparecendo e considero que todos eles foram sendo (ou estão a ser) ultrapassados pela União Europeia, resultando num crescimento da maturidade do bloco e dos recursos ao seu dispor para fazer frente às crises. A Lei de Murphy atacou em força, mas a Europa contra-atacou e venceu.
Atualmente atravessamos outra tempestade perfeita, patrocinada por Putin e Trump. O primeiro presidente laranja da América matou, como se previa, a tecnocracia, mas foi, tão cedo no mandato, já muito para além disso, tentando atropelar e desmantelar mecanismos democráticos para favorecer um conjunto de oligarcas. Neste cenário, não é de espantar que a União Europeia seja o principal rival de ambos os imperialistas. A União Europeia é hoje o representante legítimo, não só do velho continente, mas de todos os países verdadeiramente democráticos que não se identificam com nenhum dos grandes blocos (EUA, Rússia, China e Índia). No caos das tarifas e chantagens, a América hipotecou toda a confiança, influência e poder suave que acumulou como potência dominante no último século. É a hora da União Europeia assumir as rédeas do mundo livre e conservar a ordem, paz e prosperidade, nem que seja à revelia dos restantes grandes blocos. Para já os sinais são animadores! Assistimos a um “toca a reunir” em redor de Bruxelas de todos os potenciais candidatos a membro da União Europeia, mesmo os mais relutantes como o Reino Unido, a Noruega e, até, do Canadá (vítima principal das políticas de Trump). Para cumprir este papel, a Europa necessita apenas de vontade política, que me parece existir e de recuperar a soberania adormecida através de uma solução credível de defesa.
O investimento na defesa é “feio”. Não traz benefícios palpáveis à sociedade, é, antes pelo contrário, considerado por muitos como o responsável pelo terror da guerra, o pináculo do sofrimento humano. Eu, contudo, discordo desta visão. O investimento na defesa, num contexto democrático, deve ser encarado como uma espécie de seguro. Um exército bem planeado deve ser, num primeiro momento, um elemento dissuasor de qualquer agressão e invasão. No pior cenário, se a dissuasão falhar é o escudo da sociedade. Assim, as notícias do rearmamento europeu são um marco notável, confirmam que a Europa vai a jogo! E com a clara motivação de não deixar o mundo, começando pela Ucrânia, cair em mãos imperialistas, numa nova ordem autocrática. Só podia ser assim, no último momento, perante a traição das traições. Só a Europa, com as suas democracias mais robustas, resistentes (mas não imunes) aos extremismos e sem a centralização de poder num único ponto (dada a sua organização em confederação sui generis) pode ser o farol da liberdade, humanismo e democracia.
Como pode, então, a União Europeia emergir vitoriosa, de todo este caos? Eis o rumo que gostaria que o bloco tomasse:
- Uma estrutura de defesa credível, com efeito dissuasor. Incluindo investimento coordenado pelos estados-membro para corrigir lacunas na produção europeia e guarda-chuva nuclear comunitário (como sugeriu Macron). Adicionalmente, uma percentagem os meios (materiais e humanos) dos exércitos nacionais devem ser colocados à disposição de uma mobilização em bloco, em caso de invasão de algum estado-membro (ficando apoio adicional ao critério de cada estado-membro).
- Apoio à Ucrânia para colocar o país nas melhores condições possíveis para um eventual acordo. Caso não seja recuperado, de imediato, todo o território internacionalmente reconhecido (o que é, aliás, provável) garantir a possibilidade da Ucrânia entrar sem controlo de todo o território, como já acontece com o Chipre. Idealmente, ambos os países conseguirão no futuro regularizar as suas situações e passar a administrar, de facto, todo o seu território.
- Construção contínua do bloco, finalizando os diversos programas já identificados no âmbito de crises passadas como a união bancária, a união de mercado de capitais, a união de saúde (englobando o espaço de dados de saúde) e a união de segurança, entre outros.
- Expansão ambiciosa, aproveitando o contexto internacional para acelerar a entrada de países historicamente relutantes como a Islândia (onde o novo governo é a favor de um referendo de entrada), a Noruega, a Suíça (pelo menos dando passos no sentido da integração) e a reentrada do Reino Unido (onde já há apoio popular, mas justificar novo referendo pode demorar alguns anos). Para os atuais candidatos (incluindo a Turquia), devem ser dadas garantias de segurança, após ser estabelecido a tal estrutura de defesa.
- Esclarecimento de que o Canadá pode ser candidato, se assim decidir, numa declaração semelhante à que foi feita recentemente em relação à Arménia. Clarificando o caminho ao povo canadiano num momento tão imprevisível, aproveitando, especialmente, a eventual eleição de Mark Carney como primeiro-ministro.
- Reformar os tratados, consolidando-os finalmente numa Constituição Europeia e agilizando alguns processos: substituindo a unanimidade no Conselho Europeu por maioria qualificada (já usada noutros contextos) e acabando com o vaivém entre Bruxelas e Estrasburgo.
Aqui chegados podem estar a chamar-me ingénuo, mas lembrem-se que tudo o que sugiro aqui é muito mais realista do que imaginar uma Europa unida em 1945. Que ingénuo, aquele Churchill…
PS: Já me esquecia de agradecer à administração Trump pelo magnífico presente de ver o verdadeiro mundo livre mais unido que nunca! Aproveito até para lhes dedicar um excerto de uma das melhores músicas que Portugal levou à Eurovisão, pela voz de José Cid: “Addio, adieu, aufwiedersehen, goodbye”!
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