A professora chegou à primeira aula. Não sei qual era a disciplina. Podia ser Filosofia ou História, talvez. Os alunos estão sentados e a primeira voz a apresentar-se é a dela. Sem rodeios, não diz o nome, idade ou de onde vem. Vai direta ao assunto porque para fazer pensar é preciso olhar sobre as coisas que nos rodeiam. O que importa é saber o que e como pensas.
Começa a falar:
- Isto é uma história sobre o passado. Passaram mais de 10 anos e o mundo vê, a céu aberto, as casas, os carros e as pessoas. Andam e correm nas mesmas ruas que a cidade pintou, onde os vossos pais beijaram as vossas mães pela primeira vez e viram os vossos avós fazerem as compras; pela última vez. Isto é sobre vocês: os filhos que ainda não tinham nascido, mas que eram desejados mesmo quando o cenário era turvo. Vão ouvir falar em muita coisa dos tempos em que os vossos pais eram jovens: quando a tecnologia evoluía a uma velocidade astronómica; quando havia pobreza onde há deserto e havia riqueza onde moram prédios altos; quando a política mudava de dono, havia esquerdas e direitas, mas também havia fascistas e liberais; quando a economia rompeu em países da Europa, da América, da Ásia enquanto, no fundo, deveríamos ter agido como um só Continente; quando alguns homens se juntaram para defender os seus cidadãos, mas também outros continuaram a pensar só neles. Houve casos em que uns matavam outros, pela cor da pele, e outros que se manifestavam nas ruas.
E perguntam: o que aconteceu? O que já ouviram contar: uma pandemia, um vírus com nome que precisou da ciência. A que vocês escolhem estudar para salvar, mas que precisam de saber ler para escrever. E aí percebem que os pilares que seguraram a humanidade não se trataram apenas das ciências exatas ou sociais, trata-se do saber-estar e saber-viver, em grupo, em comunidade. Os vossos familiares precisaram de estar distantes uns dos outros. Contactavam por videochamadas. A vossa prima mais velha, no primeiro emprego dela, trabalhava em casa. O vosso tio perdeu o emprego e alguns vossos conhecidos nunca ficaram sem trabalhar. Mas fechou tudo. Não podiam ir beber café, ir ao teatro, dançar num bar, ver uma exposição, andar de avião... De um dia para o outro. Aprenderam que usar máscaras não era apenas uma necessidade da população chinesa, por causa da poluição, ou dos médicos, para operar doentes. Viram o calor quando não era verão e viram chover quando não era inverno; viram florestas a arder e animais a morrer; viram pessoas no poder que não sabiam liderar e viram que o mundo não precisa só de alguns para sobreviver.
É muita coisa, não é? Vão estudar guerras, alterações climáticas, democracias e improbabilidades. Coisas que ainda estão por descobrir e por fazer, mas que não se espera por elas. Vão perguntar pela poluição dos mares em que mergulham e por que há tantas filas de carros no caminho para a escola. Vão tentar saber o que uma pandemia tem a ver com desflorestação, dinheiro e fome. Isto é uma lição do que foi, do que é e do que está para ser. Mas há uma coisa que têm de saber sobre tudo o que vão aprender nesta sala de aula e noutras, onde podemos falar uns com os outros, tocar-nos e cumprimentar-nos: um dia não foi assim; a vida não é sempre o que esperamos e nunca podem estar sozinhos ou sozinhas. Dependem sempre do Outro, da ação de quem está ao vosso lado e da razão que vos traz aqui: conhecer o que não conhecem. E para conhecermos quem somos precisamos de estar com o Outro, numa relação de alteridade e reciprocidade.
A professora acaba de falar. Os alunos continuam sentados e sem saber o nome dela, a idade e de onde vem. Na verdade, a aula ainda não tinha começado, mas os filhos já pensavam sobre o passado dos pais, no presente deles que será reflexo do futuro de alguém.
A primeira pergunta não foi quem era a professora, mas sim quem os alunos poderiam vir a ser.
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