As histórias de luxo e desperdício dos senhores da Península Arábica estão tão fora da nossa compreensão que até é difícil acreditar nelas. Como a do sheik que foi no seu Boeing 747 caçar faisões em Marrocos. A batida é feita em veículos SUV com falcoeiros na caixa aberta. Os falcões, que valem dez mil dólares, perseguem as presas e trazem-nas à mão dos caçadores. No fim da do dia, o sheik mandou o seu avião entregar as aves abatidas no emirado, para estarem cozinhadas quando voltasse. Ou a história de outro sheik cujo filho torceu o tornozelo e mandou vir uma equipa de médicos dos Estados Unidos até Paris para diagnosticar o rapaz. Ou ainda outro que trouxe duas artesãs de Cuba para enrolarem charutos frescos no Dubai.

Isto, para não mencionar os iates de 160 metros, os Rolls Royce de ouro e outros luxos que nem conseguimos conceber que sejam possíveis.

Também sabemos, porque estão amplamente documentadas, as violações dos direitos humanos, tanto coletivas - o trabalho escravo nas construções faraónicas - como individuais, com execuções sumárias sem julgamento de supostos criminosos, sejam pessoas LGBT+, sejam mulheres que não cumprem a sharia, sejam simples desafectos da classe dominante. Ficou tristemente célebre o assassinato e desmembramento do jornalista Jamal Khashoggi, na embaixada da Arábia Saudita na Turquia, mas haverá muitos outros assassinatos de pessoas anónimas.

Esse crime teve consequências inesperadas para o prestígio daquele que é - de facto - senhor da Arábia Saudita. Mohammed bin Salman que já andava nos noticiários desde 2017, quando foi escolhido pelo seu pai, Salman al Saud. Tem-se mostrado simultaneamente um tirano - mandou prender muitos dos seus familiares para lhes extorquir dinheiro e mostrar o seu poder - e um modernizador (em termos relativos), ao autorizar cinemas no reino e permitir que as mulheres possam ter carta de condução e ao tirar poder ao Comité para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício.

MbS, como costuma ser chamado, não gostou do revés na sua imagem mundial, causado pelo que seria um pormenor sem importância no exercício do poder absoluto de que desfruta. Porque não usar os meios fabulosos que tem à  disposição para recuperar o seu prestígio? A Arábia Saudita produz 12% do petróleo mundial (os Estados Unidos extraem 20%, mas consomem mais do que produzem). Segundo o jornal britãnico “The Telegraph”, a família Saud vale 1,3 triliões de libras (1,162,713,634,096 euros), mas este valor é uma estimativa por baixo. O chamado Fundo Soberano Saudita (PIF) tem à sua disposição fundos inesgotáveis, que crescem diariamente.

Para recuperar bom nome na esfera internacional, se é que se pode assim dizer, a decisão, de MbS ou dos seus conselheiros, ou das empresas multi-nacionais contratadas para o efeito, ou de todos em conjunto, foi de investir no desporto - a atividade que, sem dúvida, envolve o maior número de adeptos, fanáticos e simpatizantes em todo o mundo. Qual desporto? Bem, já que os fundos são quase inesgotáveis, por que não em todos?

Segundo um levantamento feito pelo site “Quartz” , o plano envolve investimentos - e a consequente influência - no futebol, boxe, Fórmula 1, basquetebol, críquete e golfe. O objetivo final seria a Arábia Saudita ser escolhida para os Jogos Olímpicos. Para já, conseguiu ser hóspede dos Jogos de Inverno Asiáticos em 2029 e sê-lo-á de novo em 2034. O facto de não haver inverno no golfo e de não pertencer à Ásia não impediu estas escolhas da tutela multinacional dos Jogos.

Parece impossível, mas também parecia impossível o emirado obter um lugar no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, e no entanto foi eleito em 2015 e só perdeu o lugar em 2020, perante protestos de toda a comunidade de organizações humanitárias internacionais.

Também parecia impossível ser escolhida para o Campeonato Mundial da FIFA, em 2030 (Portugal também é candidato) e no entretanto será o país hóspede em dezembro deste ano. (Isto, depois do Qatar ter recebido o torneio no ano passado, com o espectáculo deprimente das bancadas cheias de torcidas contratadas entre os semi-escravos que tinham construído os estádios).

Também um tipo de futebol menos popular, o EIR, com equipas femininas de sete elementos, teve o seu campeonato mundial em Riade, capital da Arábia Saudita.

Ainda no futebol, a Arábia Saudita comprou o clube inglês Newcastle United, em 2022 contratou Cristiano Ronaldo para o Al Nassr, por 200 milhões de dólares anuais, e Karim Benzema para o Al Ittihad. Outras contratações milionárias estão na calha, como a do treinador Jorge Jesus, por 10 milhões de dólares anuais.

Quanto à Fórmula 1, a petrolífera saudita, Aramco, patrocina a equipa da Aston Martin e a McLaren tem um acordo com a cidade futurista de Neom (que já mencionamos aqui, a propósito de Jacarta. A Arábia Saudita, que não tem uma indústria significativa, espera poder fabricar automóveis, ter marcas próprias e criar tecnologias nesta área. Por outro lado, terá feito uma proposta de 20 mil milhões de dólares para adquirir os direitos do campeonato mundial de Fórmula 1.

No boxe, os sauditas estão a preparar um torneio com quatro contentores de prestígio mundial,  Tyson Fury, Anthony Joshua, Oleksandr Usyk, e Deontay Wilder. Os prémios seriam cerca de 250 milhões de dólares. Também há um projeto para o boxe feminino!.

Quanto ao basquetebol, a ultra-nacionalista NBA já autorizou os sauditas a comprar equipas norte-americanas. Quais estarão na mira do Fundo Soberano Saudita, ainda não se sabe, mas a porta ficou aberta.

Outro espectáculo desportivo na mira dos sauditas é o críquete. Em Inglaterra é um passatempo das elites, mas tornou-se muito popular na Índia, onde tem um estatuto semelhante ao futebol no resto do mundo. A ideia é criar um torneio em competição com a Primeira Liga Indiana (IPL), com estrelas como os legendários Virat Kohli e Rohit Sharma. Já há propostas (chorudas, imagina-se) com o os dirigentes indianos da modalidade.

Contudo, se todas estas incursões desportivas levantaram alguns sobrolhos e provocaram críticas, em nenhum outro desporto como o golfe a iniciativa da Arábia Saudita provocou tanta agitação, disputas e, finalmente, a prova provada de que o dinheiro fala mais alto.

A PGA, Professional Golfers of America, fundada em 1916, é considerada a organização mais importante da modalidade, responsável por quatro competições icónicas: o Masters, o Campeonato PGA propriamente dito, o US Open e o British Open - esta última herdeira do mais antigo e tradicional campeonato, que data de meados do século XIX.

Existem outras federações e organizações profissionais no mundo, mas nenhuma tem o prestígio da PGA, onde estão todos os golfistas que mesmo o público em geral conhece, como Tiger Woods ou Nick Faldo. É uma organização sem fins lucrativos - o que ganha com os bilhetes e a cobertura televisiva é para pagar as despesas e os prémios dos torneios. Tem conselho directivo com 17 membros, muitos deles golfistas, e é dirigida Jay Monahan desde 2017.

Em 2021, do nada, o Fundo Soberano Saudita anunciou o lançamento de um torneio independente da PGA e no ano seguinte organizou o primeiro evento, em Londres. O nome, LIV, significa 54 em numerais romanos - é um número de buracos do novo formato, em contraste com os 72 do jogo tradicional. Além disso os jogos têm um ambiente completamente diferente, com música pop e um clima de espectáculo que é exactamente o oposto da seriedade contida típica dos eventos tradicionais.

O emirado instituiu uma nova entidade, Golf Saudi, financiada pelo Fundo, para dirigir uma competição fora do alcance da PGA, a Super Liga de Golfe. O primeiro torneio foi levado a cabo no campo Trump National Doral Miami, em outubro de 2022. Trump desde logo endossou a nova organização, não se sabe - mas calcula-se - como resultado da sua admiração por Mohammed bin Salman e como oportunidade de negócio para os seus campos de golfe. “Isto” está tudo ligado, como se costuma dizer...

Mas o mais importante é que a Golf Saudi começou imediatamente a convidar os melhores golfistas da PGA, com salários e prémios estratosféricos. Comenta-se, por exemplo, que Tiger Woods teria recebido um convite da ordem dos 800 milhões de dólares. Vários profissionais aderiram à LIV, enquanto outros recusaram, citando o currículo miserável dos sauditas no que toca a direitos humanos básicos.

A reacção oficial da PGA foi a pior possível. Acusou a LIV de ser divisionária e de estar a degradar o desporto (!), salientou a má reputação da Arábia Saudita, referiu expressamente que bin Salman estava a lavar a sua imagem através do desporto, e decretou que os jogadores que aderissem à LIV não poderiam permanecer nos torneios da PGA.

Os golfistas dividiram-se, uns simplesmente assinando com a nova entidade, outros recusando-se terminantemente. O clima manteve-se tenso e radicalizado. Até que, no passado dia 6 de junho, rebentou a bomba: as duas entidades entraram em acordo, criando um novo organismo, a NewCo. que juntará todos os torneios de ambas!

Segundo foi anunciado, a PGA assume a direcção, mas o Fundo Soberano saudita presidirá à Assembleia Geral e terá, evidentemente, grande poder de intervenção. O acordo ainda tem de ser validado pelo Conselho Directivo da PGA, na que será, sem dúvida, uma disputa violenta, mas previsivelmente os membros serão convencidos pelo mesmo argumento que fez Monaham mudar de ideias: milhões, bilhões, trilhões - o que for preciso.

Apesar de ainda ir fazer correr muita tinta, a disputa parece resolvida: os jogadores profissionais não têm outro remédio senão participar na nova liga se quiserem continuar na profissão, e até irão ganhar muito mais.

Como resumiu o título do “The Wall Street Journal” numa só frase, “O Príncipe Herdeiro Mohamed Bin Salman ganha mais uma vez”.

Ou, para usar um lugar-comum, o dinheiro fala mais alto. Mais do que o ruído incómodo do bom senso.