Falar de crianças e de cancro, uma conjugação de expressões que parece ser uma contradição, exige uma actuação pronta e uma atenção permanente. No entanto, apesar deste drama que nos toca e nos choca, muito há por concluir - ou apenas por começar. Falar sobre algumas destas lacunas é cumprir uma missão que, na Acreditar, tem 27 anos: ser porta-voz de uma comunidade de pais e doentes, ser suporte de famílias que passam tempos difíceis, ser interlocutor de profissionais de saúde e de decisores.

Gostaria de destacar três pontos que nos parecem importantes:    

  • Perde-se no tempo o momento em que se começou a falar de Registo Oncológico Pediátrico – autonomizado e actualizado. As perguntas ficam, tantas e tantas vezes, sem resposta. Porque não existe? O que é preciso fazer-se? Há uniformidade no país, ou cada centro usa as suas ferramentas, as suas metodologias? As estatísticas existentes são fiáveis? E são representativas de um todo nacional? O que são as implicações decorrentes da não existência deste registo oncológico ou de uma estatística fiável, nomeadamente para efeitos da definição de políticas públicas ou para efeitos de investigação?  
  • Podemos garantir que a transição dos serviços pediátricos para os serviços de adultos, assim que o doente faz 18 anos, é feita de forma adequada, de modo a garantir a estabilidade emocional do doente? 
  • O que são as implicações da saída de profissionais de saúde – sobretudo de pessoal de enfermagem – dos hospitais públicos? Que impacto tem esta saída no correcto funcionamento dos hospitais e, por conseguinte, da oncologia pediátrica? Conseguimos garantir as condições mínimas aceitáveis para o tratamento de crianças e jovens com cancro em todas as fases da doença? 

No final da semana passada recebi uma mensagem de um pai com quem tenho vindo a falar: “O M partiu...”. O M tinha sete anos e um prognóstico muito difícil; há alguns meses que se adivinhava esta situação, mas que pais se abandonam a um prognóstico médico, por mais preciso que possa ser? 

Numa dimensão puramente estatística, o M faz parte, felizmente, de uma minoria. Na verdade, cerca de 80% das crianças diagnosticadas com cancro em Portugal sobrevivem. Porém, enquanto houver o M e todos os outros para quem a vida é injustamente desafiante, a Acreditar tem de manter uma presença actuante, de estar na primeira linha da resposta. Às necessidades desta comunidade. Com uma criança que morre aos sete anos morre um pouco de cada um de nós.  

Há uma ideia, tirada, talvez, de um provérbio africano, de que é preciso uma aldeia para cuidar de uma criança. A aldeia somos todos nós: voluntários, pais, sobreviventes, irmãos, profissionais de saúde ou de outras áreas, decisores. É preciso que esta aldeia olhe para a história do M -  e de todas as crianças / jovens que são diagnosticados todos os anos - e pense no que está por fazer, no que tarda em resolver-se, na burocracia ou nos regionalismos que emperram as decisões ou que atrasam soluções.

Hoje, 15 de Fevereiro, é Dia Internacional da Criança com Cancro. Na minha memória, ou como uma espécie de marca de água deste texto, fica o M, rapaz de sete anos que partiu a semana passada, vítima recente e injusta de uma doença que afecta uma aldeia inteira.  

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João de Bragança é Presidente da Comissão Directiva da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro e  Presidente do CCI, Childhood Cancer International.