A ideia errada de que um homem a sério não pode ser vítima de abuso sexual promove uma cultura de silenciamento quando o crime ocorre na idade adulta. A violência sexual contra homens e rapazes é um tema tabu, e é preciso alertar para o facto de que este tipo de violência pode acontecer em qualquer fase da vida dos homens. No entanto, mitos, preconceitos e crenças contribuem para o silenciamento das vítimas, para a intensificação de sentimentos de vergonha e culpa, e, claro, para que não procurem ajuda.
Em 2023, dos 124 pedidos de ajuda recebidos pela Quebrar o Silêncio, 12 eram relativos a abuso sexual contra homens adultos. Este é um número que tem vindo a aumentar. Em 2020, tinham sido registados apenas dois casos. São crimes que ocorrem principalmente no contexto das relações de intimidade, saúde, lazer e desporto. Estes são contextos onde é esperado haver uma sensação de segurança e não de vitimação, o que pode gerar uma confusão imensa nos sobreviventes.
No contexto da intimidade, temos relatos de homens adultos que nos dizem “Eu não sabia que podia dizer que não”. A crença de que “um homem a sério” tem de estar sempre disponível para ter relações sexuais e que não pode, nunca, rejeitar a possibilidade de ter sexo, está na base deste tipo de abusos. Paralelamente, a desinformação em relação às diferentes expressões da violência sexual, contribui para que não se identifique o abuso como tal.
Na área da saúde, encontramos casos em consultas ou exames médicos, nos quais o profissional abusa do seu estatuto e posição de poder. Neste contexto, o paciente espera ser cuidado por um técnico, o que o coloca numa posição hierarquicamente inferior. Foi o que aconteceu a João. Numa consulta médica, viu-se obrigado a ficar despido para realizar o exame/tratamento médico, para depois ser objeto de toques desadequados por parte do profissional. Para João, este “era um cenário muito estranho" e que só durante o apoio da Quebrar o Silêncio compreendeu as dinâmicas e estratégias perpetradas pelo abusador, e conseguiu identificar o sucedido como abuso.
António, de 46 anos, relata que “ninguém espera ser vítima de abusos sexuais numa aula de grupo de um ginásio onde estão várias pessoas presentes, mas foi exatamente isso que me aconteceu”. Este sobrevivente explica como o professor usou um momento banal da aula para avançar indevidamente sobre o seu corpo. “A meio da aula, num exercício de alongamentos, o professor veio corrigir a minha postura, algo que é completamente normal. O problema foi que ele começou a tocar-me mais do que era esperado e a posicionar-se atrás de mim. Achei estranho pois não era necessário ele estar cada vez mais colado ao meu corpo.” O facto de ninguém ter reagido ao que aconteceu, contribuiu para que António ficasse mais confuso e duvidasse de si mesmo. “Como isto aconteceu durante uma aula de grupo e na presença de outras pessoas, provocou-me uma confusão ainda maior. Comecei a duvidar se tinha sido uma efabulação da minha parte ou se estava a exagerar.”
Abuso sexual de homens adultos: o que têm em comum estes casos?
Os abusadores tendem a agir deliberadamente com cuidado para que as suas ações não sejam vistas como invasivas ou desadequadas. Escalam lentamente na linguagem, no toque e na forma como se relacionam com a vítima, para normalizar determinados tipos de interações. Esta progressão, muitas vezes gradual e subtil, semeia a dúvida na vítima, para que esta se coloque em causa e possa, por exemplo, desvalorizar o caso ou achar que está a exagerar.
Independentemente da idade da vítima, o abusador detém total controlo do ambiente e da relação que tem com a mesma. No entanto, quando se é um homem adulto, subsiste a ideia errada de que este será capaz de compreender que está perante uma situação potencialmente perigosa e que saberá como se defender ou como sair desta. Não é a realidade. Sabemos que a maioria das vítimas tende a congelar/paralisar numa situação de violência sexual. Esta é uma reação natural do cérebro num cenário de ameaça. No entanto, o aceitável para muitas pessoas é quando o homem se defende, luta ou foge, impedindo o abuso.
Ter sido vítima de violência sexual na idade adulta, não faz de um homem menos homem. Esta é a realidade. Enquanto sociedade, temos de aceitar o facto de que o abuso sexual também afeta os homens (mesmo em que menor prevalência do que as mulheres) e em qualquer fase das suas vidas. Ser vítima de violência de sexual não é sinónimo de emasculação, nem motivo de troça.
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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.
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