Há nesta visita o lado sentimental de reencontro com as ancestrais raízes familiares de Biden que várias vezes tem repetido: “ser irlandês moldou toda a minha vida”.
Mas esta estadia prolongada também tem relevante significado político.
A visita acontece à passagem dos 25 anos do “Acordo de Sexta-feira Santa” que em 10 de abril de 1998 fez parar 30 anos de uma guerra civil cheia de disparos e explosões de bombas que em 30 anos mataram pelo menos 3.400 pessoas e feriram mais de 40 mil. Há quem lhe chame acordo para a paz na Irlanda do Norte. Será mais ajustado chamar-lhe acordo para a definição de bases de alguma confiança que permitam mínimos de convivência entre as duas comunidades que se opõem: os católicos, republicanos, que querem a Irlanda do Norte integrada na República da Irlanda e os protestantes que querem que a Irlanda do Norte continue a fazer parte do Reino Unido.
O “Acordo de Sexta-feira Santa”, naquele abril de '98, tornou possível que os católicos republicanos deixassem de estar na linha de mira para as balas disparadas pelo exército britânico, e os unionistas pró-britânicos, tenham deixado de viver à mercê das emboscadas do IRA, o exército republicano irlandês, braço armado dos católicos.
O acordo foi possível porque os primeiros-ministros de então no Reino Unido e na República da Irlanda, Tony Blair e Bertie Ahern, fizeram tudo o que puderam para o conseguir. Também porque dois homens que nunca se encaravam, o republicano Gerry Adams (com Martin McGuiness) e o unionista David Trimble (com John Hume) tiveram a coragem para, apesar de muita oposição das bases, ousarem experimentar a possibilidade de acordo. Para que isso fosse possível, foi determinante o esforço incansável do então presidente dos EUA, Bill Clinton. Sabe-se que numa noite Clinton passou à volta de oito horas ao telefone com todos para garantir que nem Gerry Adams nem David Hume arranjavam algum pretexto para fugir ao encontro para assinatura do acordo.
Clinton tinha experiência nessas operações especiais. Em '93, tinha-se aplicado do mesmo modo para garantir que os líderes de Israel (o primeiro-ministro Rabin e o ministro dos negócios estrangeiros, Shimon Peres) e o líder da OLP (Yasser Arafat) aceitassem juntar-se para assinar a então definida como “Paz dos Bravos”, que enquadrava a convivência entre os povos de Israel e da Palestina. Para dar mais robustez a este acordo, Clinton convidou todos para a Casa Branca, em Washington. O acordo foi assinado nos jardins da Casa Branca, em ambiente tenso. Assinaram com Clinton a dizer-lhes onde deveriam assinar no protocolo de entendimento, mas os adversários mal se olharam nos olhos e fizeram o que puderam para evitar terem de se cumprimentar com um aperto de mãos em público. Dois anos depois, em novembro de '95, um fundamentalista judaico disparou mortalmente sobre o primeiro-ministro Rabin e o que tinha sido o acordo de paz também não resistiu.
Em '98 os rivais da Irlanda do Norte também não se falavam. O acordo foi negociado por mediadores que falavam em separado com cada um dos lados. Clinton exerceu pressão máxima e foi decisivo (tal como viria a ser numa noite de setembro de 99 quando as insistências ao telefone dos então presidente Jorge Sampaio e do primeiro-ministro António Guterres levaram o presidente Bill Clinton a decidir o envio imediato de uma força militar internacional para fazer parar os massacres praticados em Timor-Leste por milícias pró-indonésias).
O acordo para a Irlanda do Norte, forçado por Bill Clinton, 25 anos depois de ter sido assinado continua a valer. O atual presidente, Joe Biden, vai querer homenagear o antecessor e todos os que se juntaram para que esse milagre fosse possível.
Belfast e toda a Irlanda do Norte deixaram de ser lugares de medo permanente como tinham sido entre o final dos anos sessenta, todas as décadas de setenta e oitenta, também a de noventa até '98. Nesse tempo, as emboscadas eram diárias, as bombas e os feridos também. Muitas vezes, com mortes. Sempre, com o medo presente.
Hoje, os troubles (na tradução, os problemas, mas de facto eufemismo para a violência diária nos 30 anos de confronto) só chegam aos menores de 25 anos na irlanda do Norte através dos relatos dos pais e dos avós. É a grande vitória do “Acordo de Sexta-feira Santa”: conseguir que 25 anos depois, o ódio da luta tribal esteja esbatido. O PIB da Irlanda do Norte cresceu 48% nestes 25 anos de acordo. Onde antes abundava o desemprego, hoje há oportunidades.
Nem tudo é maravilha de integração. Há os pubs para os católicos e os pubs ara protestantes. A religião continua a marcar muros entre igrejas que estão em bairros vizinhos. Mas a vida em Belfast é a vida normal de qualquer cidade europeia. Antes, havia os bairros que eram dos católicos e os bairros que eram dos protestantes e era de alto risco ou mesmo impossível passar de um lado para o outro. Agora, há vários bairros neutros, frequentados sobretudo pela classe média. As crianças já não vão para as escolas confessionais.
O acordo funciona, mas é imperfeito. Não contemplou o Brexit que trouxe a complicação de como encaixar a Irlanda do Norte. Mesmo alguns dos pró-britânicos querem continuar a beneficiar da livre circulação de pessoas e bens. Não querem que volte o controlo na fronteira com a República da Irlanda. É em consequência do Brexit que a Irlanda do Norte está há 14 meses sem governo, depois de os republicanos do Sinn Feinn terem ganho as eleições. .
Joe Biden vai certamente incitar ao diálogo entre os partidos, para que as feridas do passado não fiquem reabertas e para que as instituições da irlanda do Norte voltem a funcionar como ficou previsto mo Acordo de Sexta-feira Santa. É um acordo extraordinário, embora imperfeito.
Talvez Biden queira enviar destes 25 anos de convivência na Irlanda do Norte uma mensagem para os protagonistas da cada vez maior hostilidade na Terra Santa. É uma crise cuja gravidade não está atrás da que levou ao acordo de '98 para a Irlanda do Norte.
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