Ia usar este meu espaço neste respeitado jornal para falar um pouco sobre o conflito entre Israel e a Palestina e sobre como o oprimido muitas vezes se torna o opressor, e sobre o facto de Deus claramente não existir ou, a existir, ser uma criança mimada que não empresta o comando da Playstation aos colegas quando vão lá a casa no seu aniversário. Mas algo aconteceu que me fez mudar o rumo desta minha crónica semanal. Vi alguém na rua com chinelos e meias brancas. Não, não era um turista inglês, era um rapaz, recentemente chegado à casa dos vinte anos e com aspecto de quem nunca andou na escola, mas sim em colégios.

No meu tempo, usar meia branca a não ser para fazer desporto, era sinal de parolice. Quantas vezes não entrei em pânico por ver que só tinha meias brancas lavadas e ter de ir para escola com elas calçadas. A bainha das calças convinha ser comprida para tapar a meia, caso contrário seríamos chamados de “Pé de gesso” e levaríamos calduços a acompanhar a humilhação. Agora seria bullying, na altura chamava-se recreio. Anos e anos convictos de que usar meia branca, mesmo com ténis, era um erro que não podia ser cometido. Anos e anos a gozar com turistas ingleses no Algarve com sandálias e chinelos com meias brancas. Chamámos-lhes tudo. Gozámos na cara deles enquanto lhes ensinávamos que "Please", em português, se dizia "Caraio", até que o mundo deu a volta e é cool usar chinelos com meias brancas. Lamento, mas não é, continua a ser parolo. Uma coisa parola que começa a ser usada por malta cool não passa a ser cool, continua a ser parola.

As meias são um fenómeno que acompanha a evolução humana e do qual pouca gente fala. Por exemplo, houve tempos, ali algures em 2015, em que as meias encurtaram. Foi de repente, sem aviso prévio. Alguém, algures, decidiu que tornozelos eram bonitos e eram para ser vistos, especialmente os masculinos, e que usar calções com meias normais era sacrilégio. Então, retirou-se o cano das meias e começámos a usar aquelas meias que parecem sapatilhas de educação física. Quem não tinha posses, ou roupa lavada, dobrava uma meia normal para que ficasse dentro dos ténis e deixasse o tornozelo exposto, como mandava a moda. Depois, não contentes com isso, muita gente achou que, mesmo de calças, os tornozelos eram para ser vistos e as bainhas começaram a ficar subidas como se as cidades ficassem cheias de pessoas preparadas para ir apanhar lamejinhas ao mar. Antes disso tinham tentado com os corsários e, confesso, também eu passei por essa fase. Tive corsários azuis, pretos, vermelhos e, valha-me Deus, brancos. Já os queimei, obviamente, já que estou certo que é uma moda que dificilmente será cíclica, a não ser entre os concorrentes de reality shows da TVI e habitantes do Cacém ou Quarteira. Os nossos pais tiveram as permanentes, nós tivemos os corsários para as gerações vindouras gozarem connosco.

Bem, mas o que tem o conflito de Israel com a Palestina a ver com o assunto das várias modas das meias? Nada. Foi só para mostrar que devemos relativizar as coisas e que, além das guerras em nome de amigos imaginários, há outras coisas más. Escusam de tentar encontrar qualquer metáfora poética neste texto, achando que quem agora usa chinelos com meias é o estado israelita que, tendo um poderio muito maior, impõe a sua vontade e manipula a opinião, ou que os corsários são uma invenção tão má quanto a religião. Não é nada disso, lembrei-me dessas analogias agora mesmo e não fazem muito sentido. Não racionalizem nada disto. Fernando Pessoa também escreveu umas coisas sem sentido que alguém depois achou que tinham significados rebuscados. Nem todas as quadras eram bonitas metáforas, algumas eram só frases de quem estava bêbedo com absinto. Não me comparando com Fernando Pessoa, obviamente, até porque deixei de beber absinto em 2001, depois de sete shots seguidos no bar Marretas, acreditem que isto é mesmo um texto sobre meias num jornal.

Para ler: Deus Pátria Família, de Hugo Gonçalves

Para ver: Podcast Reset, de Mariana Cabral aka Bumba na Fofinha