A primeira temporada do folhetim político francês ficou concluída ao 51º dia com a nomeação de Michel Barnier para primeiro-ministro. Muito diplomata, elegante nos modos, Barnier é, aos 73 anos, o decano da negociação política em França e um mestre na defesa dos interesses da União Europeia. No estilo, é um Biden francês. Desde os anos 90, Barnier foi por quatro vezes ministro em França (agricultura, ambiente, assuntos europeus e negócios estrangeiros), esteve dez anos como comissário europeu (com Prodi e com Durão Barroso) e foi o chefe da parte europeia na negociação da regulamentação das consequências do Brexit. Foi sempre eficaz.

Agora, Macron, nomeia-o para chefe do governo de França. A questão é que ele (tal como Macron) é oriundo de uma família política perdedora nas eleições de julho: é um republicano, partido que recebeu 6,5% dos votos e que elegeu 47 deputados, número que tem minguado de eleição para eleição.

Depois das eleições festejadas pela esquerda, o escolhido para chefiar o governo é uma personagem da direita muito perdedora nas eleições.

Macron recusou aceitar os nomes propostos pelas esquerdas com o argumento de que não conseguiriam reunir maioria absoluta e cairiam de imediato no parlamento – o macronismo aliou-se, na campanha eleitoral, com as esquerdas para derrotar Le Pen, mas logo a seguir virou costas às esquerdas. Com  o voto desfavorável  dos macronistas e o das direitas o governo das esquerdas seria, naturalmente, derrubado por uma moção de censura imediata num parlamento dominado por três blocos sem diálogo.

Mas também não se vê que Barnier, apesar de grande negociador, consiga formar coligação com maioria absoluta. Os republicanos e os macronistas conseguem o máximo de 240 deputados e precisam de 288.

Entra aqui a cambalhota de Macron. O presidente que apelou à frente republicana para fazer cordão sanitário a Le Pen, agora escolhe promover o cordão sanitário para isolar as esquerdas – os insubmissos de Mélenchon são os banidos pelo presidente dentro da coligação que segue unida e coesa.

A cambalhota de Macron é um negócio político com Le Pen. O governo de centro-direita e de minoria de Barnier precisa, para sobreviver, da abstenção mais ou menos construtiva, do grupo de Marine Le Pen. O partido de Le Pen e Bardella torna-se o fiel da balança, decisivo para viabilizar o orçamento e todas as outras leis, tal como qualquer moção de censura.

Le Pen tem permanecido em silêncio a contemplar o espetáculo político. Esteve reunida com Macron no palácio presidencial mas escolheu não falar à saída. Quem fala são alguns dos imediatos. Dizem que esperam para analisar o que vai ser o discurso de Barnier. Exigem que seja respeitador das posições do Rassemblement lepenista, designadamente na firmeza a travar a imigração.  É o que Barnier vai certamente seguir.

O perfil e o percurso de Barnier deixa claro que ele não será um executante das instruções de Macron. Vão funcionar, enquanto o governo durar, em coabitação. Com grande convergência sobre os temas europeus: o estado muito delicado das contas públicas francesas impõe a contenção exigida por Bruxelas e que as esquerdas recusam. É sintomático que Ursula van der Leyen tenha aparecido de imediato, exultante, a felicitar a escolha de Barnier.

As esquerdas, de imediato, puseram-se a gritar que Macron “está a roubar o resultado das eleições” (protesto do insubmisso Mélenchon) e que “a França está em crise de regime” (declaração do líder socialista Olivier Faure).

Vale recapitular os episódios deste folhetim político francês ao longo dos últimos 51 dias.

Em 7 de julho, nas eleições, a frente das esquerdas (NFP) surpreendeu e celebrou com festa grande ao alcançar o primeiro lugar em número de deputados. Esta vitória foi possível porque foi acordada, com o patrocínio de Macron, uma frente republicana, traduzida por uma aliança entre as esquerdas e os liberais de Macron, com o desejo de barrar o triunfo e chegada ao poder da direita ultra de Le Pen e Bardella. O cordão sanitário funcionou no dia das eleições e a esquerda chegou-se à frente para formar governo. Os dois blocos (o das esquerdas e o macronista), juntos têm maioria absoluta no atual parlamento francês, com 577 lugares (182 das esquerdas NFP + 166 de macronistas e aliados). Mas um governo encabeçado pelas esquerdas iria contrariar a política liberal que está no cardápio de Macron.

O presidente, que tem o poder de escolha do chefe de governo, iniciou um jogo de paciência. Manobrou para sair do beco sem saída em que estava o poder dele, ainda que para isso colocasse a França em impasse.

Uma escolha ficou clara: Macron recusa entregar o governo a alguém indicado pelo NFP, apesar de este bloco das esquerdas ter sido o mais votado nas eleições. O presidente manobrou para tentar um governo com socialistas e verdes (a ala mais moderada dentro do NFP) mas recusa os insubmissos, o partido com mais deputados. Macton tentou cindir a aliança NFP e puxar socialistas e verdes para uma coligação ao centro com o liberalismo dos macronistas e dos republicanos.

O presidente Macron não conseguiu abrir brechas à esquerda para com aquelas alas moderadas promover um governo de bloco central em que ele continuasse a ser o comandante. Virou-se para a direita. Deixou cair o bloqueio a Le Pen, fica a presidir aos conselhos de ministros com a política liberal que ele quer. Vai ficar confrontado com a contestação das esquerdas.

A manifestação deste sábado em Paris é uma amostra do que está pela frente. O tempo de sobrevivência do governo Barnier é muito incerto, dependente de Le Pen e desafiada pela fúria das esquerdas.

É o epílogo da primeira temporada do folhetim político francês com a escolha do primeiro-ministro. Está para começar a segunda temporada, com a crise política e social