No passado domingo, milhares de Cubanos saíram às ruas naquela que tem sido reportada com a maior demonstração popular desde os protestos de 1994 que ficaram conhecidos como Maleconazo. Dada a semelhante escala de ambos os protestos, muitos têm sido os comentadores que têm analisado as recentes demonstrações como o florescimento da semente plantada na década de 90. No entanto, ambos os eventos parecem ter um enquadramento bastante distinto.
Cabe, em primeiro lugar, analisar a situação económica na ilha do Caribe. A pandemia teve um efeito catastrófico nas finanças públicas cubanas. O turismo e a exportação de açúcar são duas das atividades económicas que mais contribuem para a balança comercial cubana. Com as restrições de movimento impostas pela maioria dos governos mundiais, estima-se que o número de turistas que visitou o país caiu em 90% face ao ano anterior. Também a colheita de cana-de-açúcar, produto que existe em abundância, ficou aquém do previsto, situando-se nos 60% das previsões realizadas antes de 2020, devidos às adversas condições climatéricas e à crise energética em que o país vive. Em 2020, a economia contraiu 11% e estima-se que esse número seja ainda mais elevado em 2021.
Igualmente importante para a economia cubana são as transferências financeiras realizadas por cubanos emigrados nos EUA. Estas, aliadas ao capital proveniente do sector turístico, constituem o grosso do capital estrangeiro, essencial para a importação de produtos provenientes de países terceiros. É neste contexto que importa tocar na questão do embargo americano.
Tendo sido inicialmente decretado por Dwight D. Eisenhower em 1958, el bloqueo é o embargo mais longo da História Moderna. Intensificado pela desastrosa invasão da Baía dos Porcos e pela crise dos mísseis de Outubro de 1962, o governo americano impõe sanções a quaisquer empresas (sediadas nos EUA ou subsidiárias estrangeiras de empresas sediadas em solo americano) que, tendo atividades comerciais nos EUA, desenvolvam relações comerciais com entidades cubanas. De acordo com dados publicados pelo governo cubano, estima-se que o embargo, desde a sua implementação, tenha custado cerca de 753 biliões de dólares à ilha do Caribe.
Importa também realçar que a Assembleia-Geral da ONU tem aprovado inúmeras resoluções criticando os impactos causados por este embargo. Se em 1992 tal resolução contou com o voto favorável de apenas 58 membros, em 2021 184 dos 193 Estados-membros da ONU adotaram uma postura crítica face ao embargo americano, reforçando os efeitos nefastos que o mesmo tem produzido no fornecimento de alimentos, água potável e medicamentos no território cubano. George Schultz, antigo Secretário de Estado da administração Reagan, chegou a afirmar que “o embargo foi um falhanço a todos os níveis,” reforçando que o mesmo contribuiu para “o empobrecimento do povo cubano”.
Apesar de uma aproximação na fase final da presidência de Obama, as relações entre os dois países voltaram a deteriorar-se com a eleição de Trump em 2016. Cuba volto a acompanhar o Irão, a Coreia do Norte e a Síria na lista de países que “apoiam o terrorismo”. O presidente republicano desenhou uma nova estratégia que, de acordo com o seu Secretário de Estado na altura, visava “esfomear a ilha”. Esta estratégia, implementada para colocar “pressão máxima” no governo cubano, visava bloquear, ainda mais, o acesso de Cuba a moeda estrangeira. Para tal, limitou o número de viagens entre Cuba e os E.U.A. e bloqueou transferências de capital por parte dos emigrantes cubanos em território americano. Este bullying político norte-americano assume-se cada vez mais como trunfo eleitoral no estado da Flórida onde residem cerca de 1,5 milhões de cubano-americanos. Recorde-se, aliás, que o Mayor de Miami sugeriu que Biden considerasse bombear o país latino-americano face aos protestos testemunhados no passado domingo.
No entanto, a história destes protestos não pode começar nem acabar com o embargo americano. Por um lado, Dias-Canel não é Fidel Castro. Não tem o seu carisma nem a capacidade de mobilizar o número de pessoas como o líder revolucionário o fez em 1994. Por outro lado, Cuba sempre dependeu fortemente de países terceiros. Em Dezembro de 1991, o desmantelamento da União Soviética provoca uma profunda recessão económica em Cuba, dando origem ao já mencionado Maleconazo. Já no século XXI, Cuba desenvolveu uma relação estreita com o governo venezuelano que permite a importação de petróleo a preços bastante favoráveis. A oposição ao governo de Maduro já mencionou, inclusive, que Cuba revende parte desse petróleo no mercado internacional. Desde 2013, contudo, que a Venezuela vive uma das maiores recessões económicas da História Moderna e o impacto é também sentido em Cuba. Para a população mais jovem, el bloqueo parece ser apenas parte do problema. Enquanto que as gerações mais velhas se recordam das melhorias no acesso à saúde, da reforma cultural e das campanhas de literacia do período pós-revolucionário, as gerações mais jovens recordam-se da escassez de recursos que tem marcado as últimas décadas. Os protestos do passado domingo são, de certa forma, a confirmação de que Cuba não é imune a esta divisão política geracional a que temos assistido um pouco por todo o mundo.
A relação de poder entre o Estado e a população tem sido alterada nos últimos anos. Em 2018, o governo disponibilizou uma rede nacional de internet móvel, permitindo o acesso à internet a 4 milhões de cubanos. O controlo exercido pelo governo na comunicação social (recorde-se que, no domingo por exemplo, vários jornalistas foram detidos, inclusive uma jornalista ligada ao diário espanhol ABC) não é replicado nas redes sociais. Vários são os órgãos de comunicação social anti-Castro, financiados por programas de “promoção de democracia” norte-americanos, que têm adotado uma estratégia agressiva em espaços publicitários do Facebook e YouTube. A transmissão nas redes sociais dos protestos do passado domingo levou a um alastramento dos mesmos pelos diferentes centros urbanos de Cuba.
Também na cultura, uma das indústrias mais associada com a revolução, têm existido tensões. A resposta de Diaz-Canel aos protestos de 2020 do Movimento São Isidro, composto por artistas jovens, foi híbrida. Se, numa fase inicial, a estratégia envolveu o diálogo pacífico e a concessão de algumas garantias, numa segunda fase o governo desenvolveu uma retórica de reverse-McCarthyism, organizando “manifestações de apoio ao governo” em que acusava os protestantes de promoverem uma “estratégia bélica não-convencional com o objetivo de derrubar a revolução”, com os órgãos de comunicação social estatais a descreverem os membros do movimento como “mercenários americanos”.
Este conflito geracional mencionado acima afigura-se como o maior desafio da administração cubana dos últimos 20 anos. As gerações mais jovens parecem não aceitar o argumento de que o embargo norte-americano é a principal causa da deterioração das condições económicas do país. Para os manifestantes, a descentralização do poder e a democratização do sistema político parecem ser o ponto de partida para a reversão do ciclo económico vivido nos últimos anos. Resta entender qual será a resposta da administração Dias-Canel. Se por um lado existe a possibilidade de intensificar e utilizar a divisão geracional da população cubana em seu favor, o presidente cubano pode igualmente promover e participar num diálogo que parece cada vez mais inevitável.
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