(1) Uma palavra em (2) sete línguas
Há muitos anos, lembro-me de ouvir o meu professor de Português a usar a palavra «medo» para mostrar a sequência das línguas ibéricas, com a sua sucessão de palavras que mudam devagar, com algumas fronteiras curiosas lá pelo meio. E assim dizia: «medo» em português e galego; «miedo» em castelhano; «por» em catalão; «peur» em francês; «paura» em italiano; «frică» em romeno. Há outras línguas latinas, mas estas são as principais — e pelo meio lá estava o catalão, uma antiga língua que poucos conhecemos.
Também por causa dessa aula, entre outros episódios que não posso contar agora, calhou-me na rifa ficar com uma certa pancada pelo catalão e pela cultura dessa...
E agora? Enfim, podia agora dizer «dessa região» e ofendia alguns amigos, pois a Catalunha, para eles, é muito mais do que uma região — se, por outro lado, dissesse que a Catalunha é uma nação, ofendia não sei quantos espanhóis — e também alguns portugueses, muito ciosos da unidade de «nuestros hermanos», sem reparar que alguns deles diriam «nostres germans».
Bem, mas não é disso que quero falar hoje e, por isso, fico-me por esta fórmula que não assusta ninguém: calhou-me na rifa ficar com uma certa pancada pelo catalão e pela cultura que se expressa nessa língua.
(3) Dor e (4) Barcelona
É por isso que a dor ao ver aquele ataque terrorista foi um pouco mais forte do que o habitual (e, infelizmente, a palavra «habitual» é adequada). Foi com alguma emoção que vi a frase «no tenim por», nessa língua que me diz tanto, espalhada pelas bocas de quem se levanta, em manifestações e declarações, contra os terroristas.
«No tenim por» — não temos medo. É bom dizer isto — mas também é bom admitir que, na verdade, temos algum medo.
Nós evoluímos em pequenas sociedades tribais, onde aquilo que víamos em redor podia mesmo acontecer-nos. Um tigre aparecia: podíamos morrer. Uma tribo rival aparecia por entre as árvores: podíamos morrer — e podiam morrer os nossos. Daí que estejamos biologicamente preparados para sentir medo — é uma questão de sobrevivência.
Hoje, vemos ataques na televisão e, embora saibamos que a probabilidade de nos acontecer a nós é mais baixa do que morrermos num acidente de carro, aquilo mete-nos medo. Porquê? Porque olhamos para aquelas imagens e sabemos que o terror está ao nosso lado — que podíamos estar a passar nas Ramblas e, por acaso, morrer.
(5) Pureza e (6) morte
Os terroristas sabem disso — e por isso especializam-se em formas eficazes de provocar o máximo de terror possível. Porquê? Porque para eles não valemos nada. Não valemos nós, nem valem os milhares de milhões de pessoas que não pensam exactamente como eles, que não seguem a exacta interpretação da sua corrente particular da religião que lhe calhou em sorte. São puristas, estes terroristas. Para eles, a maioria dos muçulmanos vale tanto como os infiéis: nada.
Esta irracionalidade que tudo incendeia no altar duma qualquer pureza — já estivemos tantas vezes aqui: no altar duma religião pura, duma ideologia pura, duma nação pura. Nesse altar já tantos de nós morremos. Nesse altar, os corpos de gente normal trucidada por uma carrinha são quase nada.
(7) Medo
«No tenim por.» Não temos medo. E, no entanto, temos. Fingimo-nos fortes, mas sabemos que somos fracos. E ainda bem. São precisamente aqueles que não têm a fraqueza da compaixão pelos corpos trucidados por carros, carrinhas, camiões, aviões — são precisamente aqueles que acham que são superiores ao mundo, mais puros, fiéis entre infiéis — são precisamente esses seres que não têm medo e se orgulham da coragem dos assassinos — são precisamente esses que matam e, no fundo, se acobardam perante a irresistível tentação duma ideia forte, pura e bruta. Sim, eles matam em nome duma obsessão compulsiva, dum desejo de pureza radical, de fogo nos olhos, de vida eterna. Nós ficamos com o medo e com essa certeza que podíamos ser nós. Porque aqueles que morreram são dos nossos — sejam eles quem forem.
Só tenho pena que os gajos não cheguem a saber que as virgens ficaram todas cá em baixo.
Marco Neves | Autor do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol (Guerra e Paz). Tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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