António Mega Ferreira é um dos grandes de Portugal nos últimos 40 e tal anos. Deu-nos mais mundo, estimulou a nossa curiosidade, puxou por nós. Audaz, erudito, teve a sabedoria para envolver todos, como ficou óbvio num acontecimento transformador como foi a Expo-98, que ele co-idealizou e concretizou.
Antes da Expo, Mega tinha contribuído para mudar e tornar mais relevante a informação na televisão portuguesa, quando em 1978 fundou e chefiou a redação do Informação2, com uma equipa que tinha Joaquim Letria, Hernâni Santos, José Júdice, Carlos Pinto Coelho, Joaquim Furtado e outros. A RTP2 foi então refundada por Fernando Lopes, era o “canal Lopes”.
Depois da Expo, Mega foi escolhido para desenvolver o rumo possível para o CCB e a Orquestra Metropolitana de Lisboa. Partilhou prazer connosco nos 30 e tal livros que escreveu – Roma é um guia precioso para a melhor visita à capital italiana, Com as Cartas de Casanova entrámos mais no mundo do aventureiro veneziano, escritor e libertino universal. As escolhas de Mega para protagonistas (Dom Quixote, Marcel Proust, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Abel Salazar, Graça Morais) nos livros que escreveu com requinte revela algumas das preferências.
A ação pública mais transformadora de António Mega Ferreira terá sido como idealizador e concretizador da Expo-98 como base para transformar a paisagem urbana e cultural de Lisboa, com efeito propagador a todo o país. A Expo, naquele formidável ano de 1998, puxou pela auto-estima dos portugueses e colocou Lisboa como nova descoberta para as rotas turísticas europeias. A intensa, eclética e cosmopolita produção cultural introduziu a prática de novos consumos culturais.
Tudo começou em 1989. António Mega Ferreira e Vasco Graça Moura integravam a Comissão para as Comemorações dos 500 anos dos Descobrimentos Portugueses, que tinha sede na Casa dos Bicos, no Campo das Cebolas. Costumavam levar a conversa para longos almoços em restaurantes da zona. Um dia combinaram que o almoço seria a três, também com Eduardo Prado Coelho, num restaurante a uns 200 metros da Casa dos Bicos, o Martinho, na Arcada nascente do Terreiro do Paço.
A ementa teve bacalhau, vinho tinto de boa criação (Mega era exigente nas escolhas) e a conversa era para passar pela revolução que estava em curso no Leste europeu e que haveria de levar à queda do Muro de Berlim em 9 de novembro desse ano. Mas a agenda prática deles impunha que começassem por trocar ideias sobre a Expo-92, em Sevilha, focada na celebração de Colombo e dos cinco séculos passados sobre os descobrimentos espanhóis.
Mega, sempre ousado e visionário, pôs na conversa ao almoço a ideia de trazer para Lisboa uma Expo Mundial, ainda mais ambiciosa do que a de Sevilha, a realizar em 98, coincidindo com os 500 anos da viagem inicial de Vasco da Gama até à Índia. Uma Expo também dedicada aos oceanos.
Todos cavalgaram com empenho a concretização dessa visão. Ficou assente no final daquele almoço que o que tinham discutido era mais do que um sonho, era um projeto para concretizar.
Vasco Graça Moura ficou com o encargo de levar a ideia a Cavaco Silva, então primeiro-ministro. Eduardo Prado Coelho reforçaria o incitamento. Cavaco concordou e o governo atribuiu a Mega Ferreira a missão de defender, no Bureau International d’ Expositions (BIE), a candidatura de Lisboa à organização da Expo-98. Jorge Sampaio, então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, apoiou com grande ativismo e entusiasmo. Viu a organização da Expo-98 como propulsora da mudança de pele na degradada área industrial da Lisboa oriental, dando continuidade em alta escala ao que tinha sido sonhado para Lisboa-92, capital cultural europeia.
No BIE, com sede em Paris, passada a seleção prévia, Lisboa ficou confrontada com Toronto para a escolha final da organização da Expo-98. A defesa por Mega Ferreira, sustentada em grande arte diplomática e na argumentação de qualificação duradoura contida no projeto de Lisboa consolidou a maioria ampla no BIE a favor da capital portuguesa.
Naturalmente, António Mega Ferreira foi escolhido para liderar a concretização da Expo-98. Construiu a equipa multidisciplinar que cultivou com sabedoria inspiradora, notável ironia mobilizadora e, sempre, absoluto empenho.
Aconteceu uma perturbação: meses antes da abertura da Expo-98, programada para 22 de maio de 1998, Mega foi confrontado com o primeiro diagnóstico de um cancro. Houve quem lhe recomendasse interromper o envolvimento na Expo, Mega não hesitou: continuaria sempre.
Permito-me juntar um testemunho pessoal: como condutor das manhãs da Antena 1 fui a Barcelona para a reportagem da primeira apresentação internacional do programa da Expo-98.
Ramon Font (considerado com justeza como o mais português dos catalães), então a cooperar com Mega Ferreira na divulgação da Expo-98, pensou na valia de projetar futebolistas portugueses então com grande popularidade pelo desempenho no campeonato de Espanha – Luís Figo, Vítor Baía, Fernando Couto, Pedro Pauleta, Ricardo Sá Pinto e outros – como embaixadores da Expo-98. A ideia de os juntar foi organizada e concretizada em conjunto por Ramon Font, João Paulo Velez (porta-voz da Expo-98) e Mega.
Todos aqueles famosos do futebol português foram designados “embaixadores da Expo-98”. A cerimónia decorreu na esplanada de um hotel (o Arts) frente ao Mediterrâneo, em Barcelona, e incluiu uma conferência de imprensa com Jorge Sampaio e António Mega Ferreira.
Nesse dia, a manhã da rádio pública tinha sido transmitida em direto do palco da cerimónia. Mega participou como entrevistado, entre as 8 e as 9 da manhã. Ele estava em tratamento da doença que tinha episódios dolorosos. Aquele era um desses dias maus. Foi para mim (condutor do programa de informação e entrevista) constrangedor continuar a conversa com Mega ao mesmo tempo que constatava que ele sofria com dores indisfarçáveis. Numa pausa para transmissão de uma entrevista gravada antes com um dos futebolistas, sugeri a Mega que poderíamos encurtar a conversa. Ele quis manter o que tínhamos acertado. Cortou qualquer alteração ao programado com um impactante “aguento”.
E Mega continuou a antecipar para os ouvintes o que seria o espetáculo Acquamatrix em todas as noites da Expo, também o que iríamos encontrar no Oceanário, no Pavilhão do Conhecimento e em outros lugares da Expo-98. Quis falar, com entusiasmo, da coleção 98 Marés, pequenos livros de grandes escritores editados pela Expo-98.
Foi notória a dificuldade de Mega para encontrar uma posição para estar sentado. No final, levantou-se com dificuldade. Pensei que ele não poderia participar na conferência de imprensa ao fim da tarde. Mas, embora com dores intensas, esteve e respondeu com estimulante energia às perguntas dos muitos jornalistas presentes.
Foi para António Mega Ferreira uma jornada dolorosa, difícil, mas havia uma missão que ele considerava importante e que queria cumprir. Cumpriu. Brilhante, inspirador, como era costume aparecer.
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