É um artigo sui generis. Em pouco mais de cinco mil caracteres, a palavra “fuck” ou alguma das suas derivadas aparece, pelas minhas contas, 64 vezes. Mas isso é estilo. E o conteúdo é bem mais interessante do que o estilo, ainda que a escrita com humor ácido ajude ao tema.
O tema é a cultura startup. Será mais correcto dizer o “startup lifestyle”. Mas, antes de lá chegarmos, vale a pena fazer um recuo de alguns anos.
Há menos de cinco anos, em Portugal, falar de startups era tema de uma minoria. Alguns professores e investigadores, alguns engenheiros e programadores, alguns gestores e curiosos. Na realidade, é esta a base de apoio das startups à data de hoje – o que não será de estranhar, porque foi aqui que tudo começou. É aqui que reside a autenticidade, se é que podemos falar disso, de algo que hoje se transformou para muitos numa espécie de movimento.
Nesse longínquo ano de 2011, já se passavam algumas coisas interessantes em algumas universidades, já existiam algumas pessoas com curriculum para serem precursores de uma nova forma de fazer empresas. Lembro-me, por razões diferentes, de nomes como os de António Murta e de Vítor Magalhães, não por acaso ambos do norte. Existiam outros que estavam mesmo à beira de se tornarem nomes de referência quando procuramos histórias heróicas de empreendedorismo. Por razões diferentes - Miguel Neiva, do ColorAdd, e Luís de Matos, da Follow Inspiration, estão neste grupo. Já estavam no terreno, como se costuma dizer, em 2011.
Esse foi o ano em que fiz parte da equipa que criou o The Next Big Idea, o primeiro programa de televisão diário sobre novas ideias de negócio, lançado na SIC Notícias. E lembro-me que, numa das primeiras conversas, a pergunta que nos faziam era: “têm a certeza que há uma nova ideia por dia para apresentar?”. Havia, como se provou.
Há cinco anos, Portugal ainda gostava bastante da palavra empresário e não estava ainda fascinado com a palavra empreendedor e menos ainda com a palavra startup. Na realidade, talvez não gostássemos assim tanto da palavra “empresário” – não temos uma história admirável de empresários em Portugal, apesar de alguns nomes de excepção, e temos, desde sempre, a famosa inveja nacional a corroer aqueles a quem a vida parece correr melhor. Não era admiração, o sentimento nacional face aos empresários. Era mais o famoso “respeitinho”. E, para a maioria de todos os não-empresários, o desígnio mais apetecível de uma carreira profissional era ser “empregado”. Preferencialmente numa grande empresa, daquelas que oferecem condições remuneratórias e de progresso aliciantes. E era aqui que estava uma parte dos actuais novos empreendedores e profetas de startups, sem que fossem assolados por qualquer vontade incrível de se tornarem “donos do seu destino”. Para quê, quando alguém lhes estava a pagar o destino que tinham?
De 2011 para cá, muita coisa mudou.
As grandes empresas – e empresários – são em menor número e as condições são menos aliciantes. Algumas faliram. Alguns empresários e gestores todo-poderosos desapareceram. A banca também encolheu e ao encolher também fechou a torneira que mantinha alguns negócios em aberto.
O desemprego aumentou. As empresas grandes despediram pessoas e contrataram menos pessoas e as pequenas estavam sufocadas, como sempre têm estado. E, ao mesmo tempo, continuavam a formar-se mais pessoas nas universidades e muitas delas, face a este cenário, mantinham-se na universidade como porto seguro, em mestrados e doutoramentos.
Cinco anos depois, Portugal está em vésperas de receber a Web Summit e qualquer nova empresa, incluindo o café da esquina, ambiciona o estatuto de startup. Startup deixou de ser um termo técnico para definir empresas de rápido crescimento e com negócios escaláveis, tipicamente em virtude da tecnologia, e passou a ser sinónimo de lifestyle. Como diz shem, o autor do artigo do Medium, toda a gente é CEO de alguma coisa. E, como ele tão bem retrata, nos Estados Unidos como em Portugal – com as devidas distâncias, a começar pelo dinheiro que realmente circula - instalou-se a tal coreografia de startup way of life. Levantar muito cedo (no máximo às 6 da manhã), fazer meditação durante meia hora, guardar outros 30 minutos para ler, sem falta, todos os updates dos sites “obrigatórios”, estar em contra-relógio para lançar um minimum viable product, comprar uma mesa de ping-pong ou de matraquilhos para o escritório, ter uma sala de sestas no escritório, não perder qualquer evento de networking, ou conferência, ou sunset party, ter sempre aquele look confiante de quem espera um investimento a qualquer minuto ou de quem sabe que está – de certeza – a inventar o futuro.
São clichés, claro que são.
Há pessoas-que-estão-mesmo-a-fazer-coisas-e-a-ganhar-dinheiro-com-isso no meio de toda a coreografia. Temos em Portugal, felizmente, vários bons exemplos.
Mas são sobretudo exemplos de algo que ultrapassa este palco onde circulam muitos dos que há apenas cinco anos queriam tão somente o seu gabinete atapetado numa grande empresa e olhavam com desdém os pés-rapados que trabalhavam em garagens.
Esse “algo” que ultrapassa a coreografia é, por ventura, o mais interessante destes tempos. É que a economia está mesmo a mudar e está a mudar também porque as pessoas estão diferentes. Há cinco anos, quando conheci o Luís de Matos, ele estava a lançar a wi-GO e a desenvolver o piloto do robot de compras que hoje é uma realidade. Na altura, perguntei-lhe porque não tinha proposto o projecto a uma grande empresa em vez de o fazer por sua conta e risco. Lembro-me que ele me devolveu a pergunta: “para quê? por que razão iria trabalhar para outros?”. Também me recordo de outra conversa, com uma ex-jornalista, hoje editora livreira, que me explicava porque tinha decidido montar o seu negócio. Dizia ela, que o tinha feito porque sabia que tinha competências para isso e porque preferia viver “com uma arma na mão do que com uma arma apontada”.
Ter competências, ter capacidade para criar algo de novo e desejar genuinamente ser “patrão” de si mesmo, com todas as dores e glórias, são as melhores razões para se mudar de vida. E hoje, por tudo o que já referi, há em Portugal e no mundo muito mais pessoas nesta condição, o que é francamente animador.
Mas algo me diz que vamos ter de passar esta espuma dos dias do “startup lifestyle” e que não o faremos sem algumas dores. Voltando ao artigo do Medium, o autor refere a certa altura as festas de celebração dos “empreendedores” quando conseguem mais uma ronda de investimento. E diz ele: “Devias celebrar era o dia em que não tens de vender mais uma parte da tua empresa”. Este é um ponto decisivo. Caro entrepreneur, se o seu negócio é bom e acredita nele, é plausível que lhe venha a render mais que o investimento servido em mesadas de um fundo de investimento ou capital de risco. Quantos daqueles que hoje se encontram em todas as conferências e eventos de networking têm mesmo um negócio e ideias para o fazer crescer? Um negócio que lhes permita a qualidade de vida que todos ambicionamos, a eles e àqueles que empregam? Quantos são apenas figurantes de uma coreografia do “passa a outro e não ao mesmo” que é uma expressão apropriada para as rondas de investimento de algumas empresas com muito buzz (outro jargão de startups) mas pouco ou nenhum negócio efectivo?
As startups, as empresas criadas a partir da comunidade científica, as pequenas empresas em geral serão, certamente, mais relevantes na dinamização da economia dos próximos anos do que os gigantes de outrora. Mas isso não se define nas festas, nem na decoração do escritório. E não seremos todos Elon Musks nem Marissa Mayers. Como recordava o primeiro dos 647 comentários ao artigo do Medium, citando o filme Fight Club: “We’ve all been raised on television to believe that one day we’d all be millionaires and movie gods and rock stars, but we won’t. And we’re slowly learning that fact. And we’re very, very pissed off”.
Um dia, criar uma empresa – startup ou não – será uma normalidade. Talvez com menos confettis, mas desejavelmente com mais riqueza e emprego criados por estas milhares de novas empresas que estão a nascer em Portugal. Uma boa normalidade.
Tenham um bom fim de semana!
Outras sugestões de leitura:
Esta não é de leitura, é mesmo só de entretenimento. Um dueto Hillary e Trump que não é o que estão a pensar.
E porque temos um Nobel que vem da música e tanto discutimos as fronteiras das artes, aqui fica um mapa da Wired em que dá gosto navegar.
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