A expressão “pornografia infantil” é usada comumente seja na comunicação social ou mesmo no Código Penal português (onde encontramos a variante “Pornografia de menores” no artigo 176.º). Compreendo que várias pessoas usem esta expressão porque, com duas palavras apenas, conseguem facilmente contextualizar o assunto em questão. Noutros casos pode ser por desconhecimento da problemática que envolve esta expressão. No entanto, independentemente do motivo, precisamos de refletir sobre o que signifca realmente “pornografia infantil” e a sua aplicação. Usar “pornografia infantil” pressupõe que esta é uma categoria pornográfica como tantas outras — como, por exemplo, “pornografia amadora” — e não é. Trata-se de uma forma de violência sexual contra crianças, é crime público e deve ser apresentada como tal.
Uma criança não pode consentir
O mundo da pornografia é um tema complexo que gera vários debates, mas há algo que é preciso ter em mente para o assunto de hoje: para produzir pornografia é preciso ser maior de idade. Assim, reconhecendo que nenhuma criança pode consentir atos sexualizados com pessoas adultas, não podemos nunca falar de pornografia, mas sim de crime e violência sexual.
Quando se usa “pornografia infantil”, em vez de “material de exploração e abuso sexual de crianças” (MEASC ou CSAM em inglês), está-se a contribuir para a minimização desta forma de violência sexual, da sua dimensão criminal e do impacto traumático que tem nas crianças.
Esta expressão também camufla as ações de quem abusa de crianças. Estes abusadores não estão a produzir pornografia, e quem vê não está a ver pornografia. Estão ambos a abusar sexualmente de crianças e a consumir CSAM. Esta é a realidade. Sempre que uma imagem ou vídeo é partilhado, a criança é revitimizada. Sabemos que um único CSAM pode ser disseminado vezes sem conta, sem a garantia de que alguma vez será apagado definitivamente. A cada segundo, dois novos materiais de abuso são partilhados na Internet. Em 2021, estima-se que foram reportadas cerca de 85 milhões de imagens e vídeos de crianças que foram abusadas sexualmente.
Um ciclo sem fim?
É importante reconhecer que além do impacto traumático que pode ter na vida das crianças, estas crescem com sentimentos de vergonha e culpa associados ao crime de que foram vítimas. Muitas crescem com o medo constante de que estes materiais sejam vistos pelas pessoas com quem se cruzam na sua vida. Quando são adultas, este receio acompanha-as, afetando as diferentes dimensões da sua vida. Mesmo que a probabilidade de tal acontecer seja ínfima, não deixa de ser uma preocupação constante nas suas vidas e que é disruptiva.
Em 2017, o Canadian Centre for Child Protection (CCCP) realizou um inquérito com 150 vítimas de CSAM. Quase 70% das pessoas sobreviventes vivem com a preocupação constante de serem reconhecidas por outras pessoas, e 30 destas pessoas indicaram já terem sido identificadas por alguém que tinha visto imagens suas quando foram vítimas de abuso sexual.
Alternativas para descrever este crime
Nos workshops da associação Quebrar o Silêncio, que dinamizo para jornalistas sobre como comunicar/noticiar/reportar violência sexual, debatemos o uso de determinadas expressões problemáticas. Reconheço que o uso de “pornografia infantil” num título seja mais económico e rápido (e bem mais clickbait, reconheçamos também). No entanto, se o objetivo é informar o público, que muitas vezes pouco sabe sobre estes temas, usar o termo é um mau serviço que se presta.
Numa altura em que o abuso sexual on-line de crianças é cada vez maior, urge a necessidade de usarmos os termos corretos. Neste sentido, sugiro, que se use “material de exploração e abuso sexual de crianças” em vez de “pornografia infantil” ou para quem quiser usar uma expressão mais curta “materiais de abuso sexual de crianças”.
Para as expressões “pornografia de vingança” ou “sextortion” sugiro o uso de “violência sexual baseada em imagens” (VSBI), nomeadamente nas situações em que há divulgação não consentida de imagens íntimas.
Os termos que usamos sobre estes temas moldam o pensamento e a nossa opinião. Quando são usados nas notícias (e até no Código Penal) sem serem problematizados, influenciam a forma como as pessoas pensam sobre este crime e também as próprias vítimas. Assim, é importante iniciar um debate relativamente ao seu uso, para que se use “material de exploração e abuso sexual de crianças” e não “pornografia infantil”.
---
Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.
Comentários