Um ano após a chegada do novo coronavírus a Portugal, podemos com segurança afirmar que que a única realidade segura e objectiva que hoje temos é a incerteza quanto ao futuro. Essa é a variável que governos e instituições de todo o mundo procuram reduzir à mínima expressão. O que realmente conta são as certezas possíveis quanto ao plano de vacinação, quanto ao cumprimento do calendário previsto e quanto ao alcançar a imunidade de grupo. E as certezas quanto ao modelo e às etapas de desconfinamento, às medidas preventivas, ao reabrir da economia e ao retomar dos negócios. Como as certezas quanto à recuperação daquilo que é um ano perdido em matéria de emprego, de investimento, de produção nacional e de confiança. No caso português, além do mais, gostaríamos de ter certezas quanto à existência e ao acerto de uma verdadeira estratégia para a recuperação do país.
Desde logo, convém perceber o que mais conta para quem tem que tomar decisões: a ideologia ou o bom senso? O privilégio para alguns ou a racionalidade para todos? Por exemplo, será realmente preciso o governo mandar descongelar as carreiras e aumentar os funcionários públicos (como fez em 2020)? Haverá algum bom motivo para não se poder aplicar o lay-off aos trabalhadores do Estado que não podem exercer as suas funções? Ou, pergunta sacramental, fará sentido injectar tanto dinheiro na TAP, empresa falida num sector em crise profunda e sem futuro definido, como no apoio à totalidade das empresas privadas afectadas pela pandemia?
É verdade que no tal quadro de incerteza em que vivemos desde há um ano, é muito difícil fazer previsões válidas e antecipar cenários seguros. As sucessivas vagas do covid-19 (e o nosso falhanço colectivo perante elas) provam isso mesmo. O que nos obriga a todos - classe política, Estado e sector privado - a ser ainda mais sensatos e cautelosos. Até porque pode haver imenso dinheiro e uma suposta bazuca pronta a disparar, mas, na vida real, o dinheiro nunca é suficiente para, ao mesmo tempo, concretizar investimento público, acudir aos mais carenciados e desprotegidos, apoiar a economia, criar emprego e tapar buracos em empresas falidas na esfera do Estado.
Os tempos continuarão a ser difíceis, admito que até piores. E embora estejamos perto de entrar na Primavera, é agora que devem ser tomadas medidas para que o nosso “Inverno” não seja tão longo e tão duro como, sem sequer usar de pessimismo, se antecipa.
Basicamente, Portugal tem de mudar de vida. O que leva, desde logo, a colocar em causa o modelo de Estado que nos rege. A mudança passa, única e exclusivamente, por sermos capazes de adoptar outro modelo de governança que, em primeiro lugar, nos torne mais competitivos e mais próximos dos nossos parceiros europeus. E que, depois, possa gerar mais produtividade, mais riqueza e mais justiça social. Não precisamos de inventar. Basta olhar para o lado e aplicar modelos económicos de sucesso indiscutível. Sejam eles liberais, social-democratas modernos ou democratas-cristãos. O importante é que estejam testados e que funcionem.
Actualmente, a população activa portuguesa ronda os 5,2 milhões de cidadãos. A esta, vamos subtrair os mais de 400 mil desempregados, os 250 mil empregados no sector social e os mais de 700 mil funcionários públicos. O resultado são quase 4 milhões de pessoas que trabalham no sector privado. Muitos deles estiveram ou ainda estão em situação de layoff. Isto é, quase um quarto da força de trabalho privada está em casa. E aqui não incluo sequer o dono do café (que tem as portas fechadas), a manicura (que não pode atender clientes), o barbeiro do bairro ou senhor da loja de tatuagens (cujas actividades estão temporariamente proibidos de exercer). Ao fim de cada dia, por junto, são mais algumas dezenas de milhares que estão sem trabalho.
A realidade é que uma economia pouco menos que parada e um sector privado a meio gás representam uma desgraça económica em cima do já de si gravíssimo problema de saúde pública. E constitui uma calamidade social a agravar as condições de vida de uma sociedade em mora.
O certo é que continua a haver milhares e milhares de funcionários públicos que não podem actualmente trabalhar, por motivos de saúde, de segurança e dadas as tarefas de que se ocupam. Nomeadamente, grande parte dos que têm funções de atendimento e de contacto com o público.
Sabemos que o Estado é fundamental no cumprimento das funções de soberania, como é essencial no exercício de funções sociais, da qual a saúde representa o mais claro exemplo da sua importância insubstituível. Mas, por cada médico, enfermeiro ou auxiliar que trabalha heroicamente e sem descanso num hospital público há um reverso da medalha. Há um técnico superior de um instituto, um administrativo de uma direcção-geral ou um motorista de uma autarquia que, em virtude da pandemia, não pode trabalhar. Mas que continua a receber um ordenado por inteiro.
Nada contra os técnicos, os auxiliares e os motoristas do Estado. O ponto é que para poder funcionar, para poder pagar devidamente a médicos, auxiliares e enfermeiros (evitando que estes tenham que emigrar para o Reino Unido e acabem a tratar de Primeiros-ministros estrangeiros), o Estado precisa de ter critério e de usar de bom senso. E, quando o dinheiro não chega para tudo (e nunca chega), é preciso relembrar que o Estado precisa de ter prioridades.
Voltemos ao princípio. No tempo de incerteza absoluta em que vivemos, o que apesar de tudo é certo é que Portugal não se pode atrasar. Ou melhor, não se pode atrasar mais. Não se pode dar ao luxo de entregar o seu destino ao acaso ou à providência divina. Muito menos à falta de planeamento, a decisões tardias ou a lideranças fracas.
É fundamental termos um Estado que oferece aos cidadãos segurança e confiança. Que não tem medo de questionar as múltiplas ineficácias do sector público e que perde a vergonha de apoiar o sector privado. O Estado pode não ter dinheiro que chegue para pagar a dívida pública e ser simultaneamente capaz aliviar impostos, criar emprego ou ajudar as empresas. É por causa disso que precisamos do sector privado a funcionar bem, a ser exigente e a recuperar depressa. Para não perdemos mais um ano, como já perdemos 2020, só precisamos de uma coisa: que o Estado não complique.
*Nuno Botelho escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
Comentários