Há sete anos a Quebrar o Silêncio abria as portas para apoiar homens e rapazes vítimas de violência sexual. Em 2017 iniciámos uma dura conversa sobre o abuso sexual de homens, uma conversa díficil, repleta de mitos, ideias erradas, estereótipos e preconceitos. No entanto, e apesar dos obstáculos, em sete anos registámos mais de 700 homens sobreviventes que procuraram apoio. Homens que quebraram o silêncio e que deram o passo corajoso de procurar ajuda.
Sabemos que este não é um assunto fácil de abordar. Existe resistência e ideias erradas que minam a possibilidade de ter uma conversa pedagógica. Muitas vezes somos confrontados com a questão “Mas os homens também são vítimas de violência sexual?” num tom de incredulidade, como se tal fosse simplesmente impossível. Depois de informarmos que um em cada seis homens é vítima de alguma forma de violência sexual antes dos 18 anos, surgem as outras perguntas. Muitas vezes as pessoas questionam se é algo que só acontece entre homossexuais (quando na verdade a maioria dos abusadores são heterossexuais, mas isso é tema para outra altura), ou como poderá uma mulher abusar sexualmente de um homem, uma vez que “Ele tem de querer, não tem?”. Estas questões são normais quando a desinformação é de tal grandeza que constrange um diálogo informativo. O abuso sexual de homens é um tabu dentro de um outro tabu — a violência sexual.
“Uma violação das boas!”
Sabemos que a maioria dos abusos são perpetrados por homens. Em 2023, em 15,5% dos casos que chegaram à Quebrar o Silêncio quem abusou era do sexo feminino. No entanto, o marcador de género está bem presente quando há casos de mulheres que abusam de rapazes e homens. Nesses casos, a visão tradicional do que significa ser homem tem um papel determinante. Uma das ideias estereotipadas centrais é a de que um “homem que é homem está sempre disponível para ter relações sexuais” e que é incapaz de dizer “não” aos avanços de uma mulher. São representações que contribuem para invisibilizar os casos quando um rapaz é vítima de violência sexual por uma mulher. Assim, nestas circunstâncias, o rapaz ou o homem vitimado pode ser visto como “sortudo” e não como vítima, e o abuso é interpretado como uma experiência sexual e não como um crime. É nestes casos que surgem comentários como “Uma violação das boas!”, “Só eu é que não tive essa sorte”, entre outros.
Podemos encontrar outro exemplo desta diferenciação de género na forma como este tipo de crime é descrito nas notícias. No contexto escolar, se um professor abusa sexualmente de uma aluna é classificado como abusador, pedófilo, pederasta, molestador ou violador, que “abusou”, “molestou” ou “violou” a vítima. Quando se trata de uma mulher, a abusadora é frequentemente referida apenas como "professora" ou "docente", e o abuso é descrito como se fosse um relacionamento entre iguais, sendo comum ver frases como “envolveu-se com o aluno”, “teve relações com o jovem”, “mantinha uma relação com aluno”, “fez sexo”.
Esta questão de género contribui para o silenciamento dos homens vitimados e também para que a violência sexual contra homens e rapazes seja motivo de troça. É comum ouvir-se estes comentários no café, no local de trabalho, nas refeições em família. São momentos em que se desvalorizam as vítimas e minimizam estes casos, como se fossem modernices, ou como se “agora tudo é abuso sexual”. E é extremamente importante lembrar que estas conversas são tidas na presença de sobreviventes que, em silêncio, interiorizam que não podem nem devem falar, pois serão alvo do mesmo tipo de comentários. A verdade é que os sobreviventes fazem parte do nosso quotidiano: são os nossos amigos, colegas, familiares, os homens com quem convivemos diariamente, mesmo que as outras pessoas não tenham essa consciência.
Enfrentar a descredibilização das vítimas, sejam homens ou mulheres, faz parte do nosso trabalho. É comum observarmos o escrutínio extenuante que acontece quando uma vítima partilha e relata uma história de abuso. Este é um trabalho numa zona de constante desconforto, a quebrar barreiras relativamente aos preconceitos e tabus. Um imenso esforço para avançar nos direitos humanos das e dos sobreviventes de violência sexual.
Sete anos depois, refletimos sobre os próximos anos da Quebrar o Silêncio. Compreendemos que não se trata de repetir o mesmo trabalho, mas que o hercúleo esforço de informar, sensibilizar e trabalhar a consciência social, pública e também política, é uma tarefa que parece não ter fim. Os mitos e representações estereotipadas não se desconstroem em ações pontuais e de curta duração. É preciso um trabalho constante, sem folgas, para que, cada vez mais, a realidade do abuso sexual de homens seja reconhecida.
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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.
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