Agora, quando o Brasil se prepara para a segunda (e derradeira) volta de uma eleição presidencial cujos efeitos se afiguram colossais, a radicalização política atingiu níveis nunca vistos. Nas ruas, na comunicação social e viral (redes) e mesmo entre amigos e nas famílias, o diálogo foi substituído por uma agressividade altíssima em que não se trocam ideias, mas se atiram palavras de ordem. Existe de facto a sensação de que é o futuro do país que está em jogo, como não acontecia desde 1988, quando a ditadura militar deu lugar a uma constituição democrática. Essa democracia, que passou por altos e baixos, nunca esteve realmente ameaçada e, pesem as opiniões ideológicas antagónicas que se digladiaram nas várias eleições, as lutas políticas decorreram sempre dentro dum contexto de liberdade de opinião.
Da primeira volta das presidenciais (e também legislativas e estaduais), que teve lugar a 7 de Outubro, emergiu um cenário de polarização total entre um candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, e um candidato de esquerda, Fernando Haddad. (Haddad não pode ser considerado de extrema-esquerda, pois o Partido dos Trabalhadores (PT), apesar do seu discurso radical e práticas socializantes, não eliminou os mecanismos do exercício democrático.)
Tudo indica, com base nos factos concretos – isto é, no que os candidatos afirmam e as suas bases defendem – que no dia 28 de Outubro a escolha vai ser entre um presidente autocrático apoiado pelas forças mais reaccionárias, e um presidente da esquerda que governou o país entre 2002 e 2016. Quando às correntes centristas e moderadas, mais ou menos social-democratas, que tiveram importância em eleições anteriores e até governaram entre 1989 e 2001 (Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso), volatilizaram-se completamente nesta eleição. Os seus remanescentes terão de optar por Bolsonaro ou por Haddad, mas decidiram abster-se, o que irá favorecer Bolsonaro.
Um aspecto que causa surpresa a todos – tanto observadores como antagonistas, como aos próprios apoiantes – é o surgimento rápido do “fenómeno Bolsonaro”. Este ex-militar, expulso do Exército por insubordinação e congressista errático desde 1990, sem currículo legislativo e conhecido pelas suas afirmações racistas, sexistas e pró-ditatoriais, apresentou-se numa plataforma ultimamente muito em voga internacionalmente, que é a do nacionalismo antipolíticos e anticorrupção. E propõe institucionalizar os métodos da ditadura militar de 1964-85, matando “trinta mil” (como disse em 1999 e repete amiúde) - presume-se que comunistas, criminosos e minorias étnicas.
Depois de, em 2012, ter sido multado por pesca ilegal em reserva ecológica protegida pela lei, Bolsonaro levou ao Congresso Nacional um projecto de lei para impedir os fiscais do IBAMA - (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, instituto que o tinha multado, de estarem armados. Uma proposta que não só contraria a sua defesa do armamento das entidades que zelam pela lei, como, na prática, exporia estes fiscais a risco de vida, uma vez que a sua actuação em zonas remotas do Brasil os coloca muitas vezes frente a madeireiros, garimpeiros e caçadores pouco simpatizantes da fiscalização ambiental (não é por acaso que uma lei de 1967, um decreto presidencial e uma portaria de 2009 autorizavam o armamento destes funcionários).
Bolsonaro propôs ainda cortar todos os fundos da cultura (Lei Rouanet e Pronac), das organizações não governamentais e modificar os apoios aos carenciados (programa Minha Casa Minha Vida, etc.), e ainda privatizar as estatais segundo uma economia neoliberal.
Como é que um indivíduo com tão poucas credenciais e com propostas tão antiecológicas e anti-sociais ganhou metade do eleitorado em poucos meses?
Em parte, como reacção à corrupção e desgovernação do PT, que afectaram a classe média; em parte porque 68% do eleitorado, tendo nascido depois de 1975, não conheceu na pele a ditadura militar que Bolsonaro pretende replicar dentro dum quadro constitucional. (A ditadura de 64-85 impôs-se por meio de um golpe de Estado das Forças Armadas, que suspenderam a constituição, enquanto no caso presente Bolsonaro chegará ao poder através de uma eleição democrática e não se espera que esvazie os poderes (judiciário e legislativo) mas antes controle o legislativo e submeta o judiciário.)
Para entender melhor o fenómeno, é necessário analisar os processos que culminaram neste Outubro transformador.
Em 2002 as classes médias (C e D) eram cerca de 56% da população, os pobres 31% (classe E) e os ricos 13% (classes A e B). Nesse ano, o PT de Lula subiu ao poder, com a promessa de diminuir a pobreza e acabar com a corrupção. O PT vinha perdendo as eleições desde 1989, devido a manobras dos grandes interesses (financeiros, industriais e rurais), que estavam assustados e assustavam a classe média com o “perigo comunista”. Assim, em 1989 Lula moderou o discurso radical e prometeu aos capitalistas que não os incomodaria. A proposta era aumentar a renda dos pobres, tornando-os efectivamente classe média, e apoiar-se no grande capital para fazer investimentos estruturais. Em 2010, quando Lula não se recandidatou devido à limitação constitucional de mandato, uma parte dessa promessa estava no bom caminho: a classe E tinha-se reduzido substancialmente – de 30% para 18,5%, a classe média (C e D) aumentara para 66% e os ricos (A e B = 15,5%) não tinham sido incomodados.
Mas nem tudo eram rosas, enfim. A erradicação da pobreza não estava a ser feita da melhor maneira – dar subsídios aos pobres era uma maneira artificial de os “puxar” para cima, onde só se manteriam enquanto tivessem os subsídios. Já diz o ditado “Deve ensinar-se a pescar e não dar o peixe”. As necessárias melhorias no ensino não foram suficientes. Ainda há cerca de 12 milhões de analfabetos, 7,2% da população com mais de 15 anos. Também na Saúde não houve melhorias significativas. Os hospitais públicos são um terror e há falta de médicos no interior.
O Movimento dos Sem Terra, constituído por camponeses destituídos, não recebeu terras úteis e os apoios necessários, e foi transformado numa milícia para azucrinar os desafectos do partido. E muitos grandes projectos, como a Transposição do São Francisco (um sistema de irrigação gigantesco) ficaram a meio com derrapagens de custos brutais.
O que leva ao maior problema de todos, a corrupção. Em 2005 estourou o escândalo do Mensalão, a seguir o do Petrolão. A Operação Lava Jato tem revelado um contínuo de desvios de dinheiro para indivíduos e para o partido. Quantias absurdas foram investidas pelo Banco de Desenvolvimento (BNDES) em países “irmãos socialistas” para que as grandes construtoras brasileiras ganhassem esses projectos. O conluio do PT com o grande capital é notório. As investigações mostraram que as maiores empresas do país estavam feitas com os quadros do partido a todos os níveis (nacional, estadual e municipal) para trocas de favores vários. E há situações como a da Samarco, uma empresa de mineração, que provocou um desastre ambiental de grandes proporções, e cujas indemnizações ainda não foram pagas.
No Brasil, a corrupção é endémica, e a todos os níveis, desde o fiscal de obras ou o funcionário da repartição, até ao Planalto. Sempre existiu. A ditadura militar fartou-se de encher os bolsos. Todos os governos nacionais e estaduais e autarquias sempre fizeram negócios inquinados com “luvas” (“propinas”). Há uma pequena história (verídica) que mostra como funciona. Perguntei a um amigo que tinha um restaurante porque não despedia os empregados que o roubavam. Disse-me que se roubassem só um bocadinho, fechava os olhos. E eles sabiam isso, portanto só roubavam um bocadinho e ficava toda a gente satisfeita. Foi esse o problema do PT: não se ficou pelo bocadinho, como todos os governos antes dele. Roubou em proporções colossais. Conseguiu deitar abaixo a Petrobrás, a maior empresa nacional e uma das dez maiores petrolíferas do mundo. Só na compra e venda da refinaria de Pasadena perdeu 580 milhões de dólares. As investigações judiciais levaram a que Lula, o homem que ia acabar com a corrupção no Brasil, fosse condenado por corrupção. Uma coisa pequena, mas que toda a gente sabe que é apenas a ponta do iceberg. Os filhos dele ficaram ricos em poucos anos. Os principais dirigentes do partido foram condenados ou estão em vias de o ser.
Outro aspecto negativo é a violência. 17 cidades brasileiras estão entre as 50 mais inseguras do mundo. O PT tem um discurso benevolente em relação à pequena criminalidade e a polícia, que historicamente sempre foi violenta como os bandidos, e continuou a não garantir segurança nas ruas nem eliminar os gangs de traficantes.
É este quadro que assusta e irrita as classes médias, as menos capacitadas a beneficiar com a corrupção e as mais ameaçadas pela criminalidade. Para elas, todos os políticos são corruptos, não só os do PT; por isso a suposta “ficha limpa” de Bolsonaro é tão convincente. A questão da insegurança em que vive a população com alguns bens joga a seu favor.
No entanto os factos contrariam esta percepção. Num levantamento feito por Gregório Duvivier (que não é imparcial, mas é factual), Bolsonaro, que entre 1989 e 2018 passou por seis partidos (PDC, PP, PDR, PPB, PTB, PFL, PSC), em 2016 esteve envolvido num negócio de 200 mil reais entre a empresa JBS e o seu partido na altura. Quando foi vereador do Rio, usou verbas municipais para pagar à sua família; e gastou 520 mil reais públicos para financiar a sua campanha. Ele próprio afirma que sonega impostos o mais que pode, como se isso fosse uma honra.
Quanto à segurança, não é claro que as suas propostas diminuam a criminalidade. Por exemplo, é a favor da pena de morte; os Estados Unidos, o único país civilizado com pena capital, tem o mais alto índice de encarceramento do mundo (793 por cem mil). No Rio de Janeiro, desde que o exército interveio, no ano passado, a criminalidade aumentou. Quanto a armar os cidadãos, uma das suas propostas, só aumentará os acidentes com armas de fogo, as altercações fatais e a insegurança geral, sem que possa de facto deter os criminosos.
Para a economia, Bolsonaro escolheu Paulo Guedes, economista liberal (da Escola de Chicago), que é acusado de ter praticado fraudes com políticos do PT e do MDB em negócios com sete fundos de pensão. Um documento obtido pela “Folha de São Paulo” calcula a negociata na casa dos mil milhões de reais.
Quanto à economia, Paulo Guedes quer reduzir 20% da dívida pública por meio de privatizações. Resumindo, uma provável estagnação do PIB e a deterioração de serviços para os mais pobres.
Mas o mais assustador é certamente a aliança que Bolsonaro fez com as seitas evangélicas. Todas elas, a começar pela maior e mais poderosa, a IURD do bispo Edir Macedo, juntaram-se para dar massa eleitoral ao micropartido PSL (Partido Social Liberal), que passou de um deputado para 52, ficando com a segunda maior bancada. Trata-se de um plano antigo dos evangélicos, descrito com todas as letras no livro “Plano de poder – Deus, os cristãos e a política”, escrito em 2008 por Edir Macedo: “(A Bíblia) não se restringe apenas à orientação da fé religiosa, mas também é um livro que sugere resistência, tomada e estabelecimento do poder político ou de governo (…)”. E mais adiante: “A potencialidade numérica dos evangélicos como eleitores pode decidir qualquer pleito electivo, tanto no Legislativo, quanto no Executivo, em qualquer que seja o escalão, municipal, estadual ou federal”.
Os pastores Silas Malafaia, Valdemiro Santiago e Robson Rodovalho, com as suas imensas congregações, também estão no barco. A IURD até já tem uma milícia, por enquanto desarmada, que dá pelo nome de Gladiadores do Altar. Quando as armas forem liberalizadas, rapidamente poderá fazer frente às milícias do PT. E, é claro, tem um império de comunicação, com a Rede Record e quase 100 emissoras de rádio.
Segundo o censo de 2010, 22,2% dos brasileiros eram evangélicos. Em 2013 já iam em 29% - sessenta milhões de votantes. Tal como as bases do PT, são compostos pelos mais pobres e menos escolarizados. Em 2014, tinham 198 deputados e quatro senadores, espalhados por vários partidos – quase 40% dos parlamentares. Dilma Rousseff não deixou de ir à consagração do megatemplo da IURD em São Paulo. Mas era claro que um governo ideologicamente materialista, simpático para com as reivindicações das minorias sexuais LGBT (que nunca conseguiu legalizar) não interessava aos evangélicos. Havia uma trégua incómoda entre o Governo e os grandes oligarcas da religião.
Já com Bolsonaro há identidade ideológica. O Presidente precisa de uma base parlamentar, pois o PSC só tinha um deputado, e eles precisam de ter o executivo na mão para avançar em direcção à “República Evangélica”. Reaccionária, messiânica, exploradora da crendice dos pobres.
Quanto ao PT, mantém as suas bases fiéis, tão pobres e fanatizadas como os evangélicos, mas perdeu o apoio do dinheiro. As grandes empresas que fizeram negócios com o partido, como a Odebrecht ou a JBS, deram-se mal. Estão a contas com a Justiça e precisam de apostar noutro parceiro no Planalto. O programa económico do PT, vago, é o prosseguimento das políticas que os brasileiros associam à corrupção e à ineficiência.
O PT continua a declarar-se democrático, mas afirma que se vencer vai regular os media através de uma nova agência para esse efeito, uma proposta de Haddad que deu origem a leituras distintas. Para o PT trata-se de uma "ferramenta" para evitar oligopólios, para os opositores do PT uma forma de limitar a liberdade dos meios de comunicação que denunciam o partido. O PT que apoia a ditadura surreal de Maduro na Venezuela, que muitos acreditam que irá desrespeitar as decisões judiciais, (perdoar a Lula e outros chefes do partido) e que tem outras posições que deixam a classe média de cabelos em pé.
Em compensação, Bolsonaro tem todo o apoio do capital. Da parte do agro-negócio, que vê o paraíso na abertura de terras índias e reservas naturais. A liberalização do uso de armas permitirá que os seus capangas empurrem os nativos para a extinção. Os empresários dos outros sectores também gostam do seu programa, porque uma economia neoliberal favorece a desregulamentação, e a privatização das estatais promete ser um bom negócio.
O PSDB e O PMDB, que desde os anos 1990 costumavam disputar o comando da Casa e organizar coligações indispensáveis aos governos, encolheram. De 240 deputados (perto da metade do total de 513) em 2006, estão reduzidos a 92. A reforçar a sua irrelevância, PSDB e DEM decidiram não apoiar nem Bolsonaro nem Fernando Haddad, deixando os seus eleitores sozinhos para decidir entre extremos. Fernando Henrique Cardoso, o mais eficiente presidente que o Brasil teve e que preparou a economia para a era PT, fez uma declaração surpreendente ao “Estado de São Paulo”: 'Não estou vendendo a minha alma ao diabo (...) Quem inventou o nós e eles foi o PT. Eu nunca entrei nessa onda. Agora o PT cobra... diz que tem de (apoiar). Por que tem de automaticamente apoiar? É discutível. (O PT) não faz autocrítica nenhuma. As coisas que eles dizem a respeito do meu governo não correspondem às coisas que acho que fiz. Por que tenho que, para evitar o mal maior, apoiar o PT? Acho que temos de evitar o mal maior defendendo democracia, direitos humanos, liberdade, contra o racismo o tempo todo.” Mais: “O PT tem uma visão hegemônica e prepotente. Isso não é democracia. Democracia implica em abrir o jogo e aceitar a diversidade.” Quer dizer, Fernando Henrique Cardoso está ofendido porque o PT não lhe deu o devido crédito – o que é verdade – e o ressentimento leva-o a considerar que o PT, tendo uma visão totalitária, não é democrático – o que na prática não é verdade porque o PT, por ineficiência ou falta de apoio, nunca conseguiu eliminar os mecanismos democráticos do país. Continua a ameaçar fazê-lo, mas as suas ameaças não são tão credíveis como as de Bolsonaro. Fernando Henrique Cardoso escolhe não apoiar o PT porque sabe que, se Bolsonaro Presidente lhe soltar os cães nas canelas, pode exilar-se no estrangeiro e viver do seu estatuto de grande senhor da política. O que poderá viver o país já não lhe interessa.
A segunda maior bancada é formada pelo PSL de Bolsonaro, e à partida não parece interessada em coligações. A esquerda praticamente manteve seu tamanho, com 136 deputados. Os sete partidos do chamado “centrão”, reunidos em torno da candidatura centro-direita de Alckmin, ainda seriam maioria, com 186 parlamentares. Mas no Brasil as alianças partidárias, abertas ou discretas, estão sempre a mudar. A fragmentação partidária aumentou, o que torna ainda mais incerta uma disputa importante para a estabilidade do Parlamento, favorecendo um Presidente sem preocupações legais.
Qualquer que seja o vencedor, nas ruas antecipa-se uma espécie de guerra civil de baixa intensidade. Confrontos entre milícias e avulsos, mortos e feridos. Já começou a acontecer.
Os brasileiros vão ter de escolher. A não ser que ocorra algo de cataclísmico, tudo indica que Bolsonaro vai ganhar. As consequências, cada um que pense bem, em sua consciência. Ou então que siga os conselhos de um pequeno vídeo que passa no Facebook, em que um cidadão descoroçoado afirma: “Sempre fui contra o PT. Mas agora vou votar a favor do PT, porque se o PT ganhar posso continuar a ser contra ele.”
Não é uma questão de se fazer ou não se fazer justiça (fim da Lava Jato, etc.); é uma questão de preservar as liberdades democráticas, pois sem elas não há justiça que valha.
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