Democracia: é o sistema de governo em que os cidadãos escolhem os seus governantes periodicamente, sob a premissa de que o Poder emana do povo e só ao povo presta contas. Nada mais simples de definir. A democracia é plasmada num documento chamado Constituição (o que não quer dizer que todas as constituições sejam democráticas, evidentemente), e o primeiro foi assinado em Washington em 1787, dois anos antes da Revolução Francesa, que só adoptaria a sua Constituição em 1791. Esta última, viria a ser alterada, anulada e restaurada múltiplas vezes, a última das quais em 1958 – ao contrário da norte-americana, que se mantém fundamentalmente inalterada até hoje (com as denominadas Emendas, que já vão em 21).

A Inglaterra, que se gaba de ser a democracia mais antiga, não tem uma Constituição; o seu sistema é o resultado de uma série de documentos que consagram o princípio do poder popular através dum parlamento, num processo que se arrastou em marchas e contra-marchas entre 1620 e 1689, (para abreviar uma muito longa história), mas não afirmam peremptoriamente que o poder vem do povo. O mais importante, a Lei dos Direitos (“Bill of Rights”), data de 1689 e foi confirmada em 1707, com o Tratado da União e finalmente fixada em 1800 com a formação do Parlamento do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. O Rei continua a não ser escolhido pelo povo; sendo hereditário, pode depreender-se que o seu poder (que é simbólico) advém de Deus.

Tudo isto – e muito mais se poderia relatar – para dizer que os Estados Unidos não só têm a Constituição democrática mais antiga, como a consideram um documento sagrado, o qual consagra famosamente: “Considera-se como verdades evidentes que todos os homens foram criados iguais e dotados pelo Criador de certos Direitos inalianáveis, entre os quais a Vida, a Liberdade e a procura da Felicidade.”

Bonito, não é? Tão bonito quanto falso, uma vez que dos 56 signatários da Declaração de Independência, 41 eram donos de escravos. (Aliás, a questão da escravatura também não foi resolvida pelos franceses: Napoleão, pressionado pelos colonos das ilhas do Caribe, voltou a instituir a escravatura nesses territórios. Em Portugal, o Marquês de Pombal aboliu a escravatura apenas no Continente.)

Seriam precisos vários volumes – que aliás já foram escritos e reescritos – para relatar o que têm sido as restrições ao voto nos Estados Unidos, não só directamente relacionadas com os negros mas também com outras minorias. No caso dos negros, por exemplo, logo na Constituição de 1787 considerava-se que contavam como três quintos dos brancos para efeitos de recenseamento do número de representantes no Congresso.

Depois da derrota do Sul esclavagista, em que teoricamente os negros passaram a ser cidadãos de pleno direito, os Estados derrotados inventaram leis limitativas da sua participação eleitoral, como testes de literacia e provas de rendimentos, por exemplo. O mais caricato deste garrote nos direitos civis será talvez a lei de 1915, a qual determinava que só podiam votar os negros cujos avós não tivessem sido escravos, o que eliminava, obviamente, praticamente todos eles.

Quanto aos “Americanos Nativos” – os índios – a situação sempre foi igualmente difícil. Basta dizer que só em 1957 o Supremo Tribunal de Justiça lhes deu o pleno direito de voto para lho retirar em 1970.

Estamos a falar das dificuldades de que as minorias foram vítimas no país em geral. Na prática, como as leis eleitorais são específicas para cada Estado, os Estados do Sul bem como os mais reaccionários, criam as suas próprias leis para retirar direitos de voto (a palavra americana é “disenfranchise”) a quem não lhes interessa.

Numa democracia “normal”, como a portuguesa, o sistema é muito simples: uma pessoa, um voto. Basta apresentar o cartão de cidadão para poder exercer o direito de voto. A única limitação será a idade, que no caso português é 18 anos, alinhado com a maioridade cívica. Na democracia norte-americana, dependendo do Estado, pode ser necessário estar registado com uma certa antecedência, provar rendimentos, apresentar o registo criminal (em certos Estados os condenados não podem votar, mesmo depois de cumprida a pena). O voto pelo correio é um calvário ainda maior; é preciso receber o voto numa morada certificada como sendo a do próprio, e requerer a entrega numa data determinada num local indicado com antecedência devida.

Para complicar tudo, nos Estados Unidos não existe bilhete de identidade, nem nacional (federal), nem estatal – porque, não ria ao ler isto, o BI é considerado uma interferência na liberdade individual. Então, para se identificarem, as pessoas têm de apresentar, por exemplo, a carta de condução, o que nem todos possuem; ou o registo de nascimento. Os índios, por exemplo, que ainda nascem em casa, não têm assento de nascimento, uma vez que os registos têm de ser feitos no hospital, aquando do nascimento.

Outro método de condicionar os resultados eleitorais consiste na alteração das circunscrições eleitorais. Como? Em todos os países (ou, pelo menos, em todos os que conhecemos), essas circunscrições são fixas desde sempre e, normalmente, coincidentes com as divisões administrativas permanentes. O óbvio, digamos. Mas não é assim em certos Estados americanos. As autoridades estatais – que podem ser o Congresso estatal, o Governador, uma comissão especialmente nomeada, ou outra entidade – têm o poder de alterar o mapa eleitoral para incluir ou excluir certos tipos de eleitores de determinadas zonas geográficas, aumentando as hipóteses de os candidatos do partido no poder do respectivo Estado serem eleitos. O processo chama-se “gerrymandering” e data de 1812.

Ora bem, a situação ao longo de décadas era tão confusa, que em 1964 o Presidente Lyndon Johnson assinou a Lei dos Direitos Civis, um acervo legislativo federal que se sobrepunha ao dos Estados e declarava todos indivíduos iguais perante a lei, independentemente da raça, credo, género ou origem nacional. A lei aplicava-se não só ao direito de voto, mas também ao de trabalhar, ser promovido e tudo o mais onde pudesse brotar discriminação.

Claro que esta lei, como muitas outras, bombasticamente anunciada pelo Governo Federal, depressa foi contornada pela legislação específica de cada Estado.

Esta situação, sempre confusa e contraditória, agudizou-se dramaticamente com a derrota do Presidente Trump em 2020. Como estamos fartos de ler, Trump recusou os resultados eleitorais, “a grande mentira”, e tentou por todas as formas, legais e ilegais (o assalto ao Capitólio, em 6 de Janeiro deste ano), reverter a derrota, alegando que as eleições teriam sido fraudulentas – o que até agora não se conseguiu provar.

Contudo, e para prevenir futuras derrotas, os Estados republicanos começaram imediatamente a promulgar um emaranhado de leis destinadas a garantir uma vitória em 2024. Os métodos são uma mistura dos de sempre como restringir o direito de voto e redistribuir os círculos eleitorais, acrescentados de mais algumas novidades, como a escolha dos órgãos certificadores dos resultados e os sistemas de contagem. Segundo um organismo independente, o Brennan Center for Justice, até junho já foram mudadas 28 leis estaduais em 17 estados.

Perante tal situação, o Governo federal resolveu promulgar a chamada Lei de Liberdade Eleitoral (“Freedom to Vote Act”), visando a anulação de todas as especificidades legais estaduais e estabelecer normas nacionais que assegurem o voto universal, sem “ses” nem “mas”.

Poderia acontecer que, como de costume, a Lei passasse no Congresso, para depois ser contornada pelos Estados. Mas, desta vez, a oposição, ou seja, o Partido Republicano ainda dominado por Trump, simplesmente recusou considerar a discussão da Lei. Na quarta-feira passada, o Senado nem sequer quis ouvir uma versão já bastante diluída de duas propostas democratas anteriores.

Como disse o inacreditável senador Mitch McConnell, líder da minoria republicana, “Enquanto os senadores democratas permanecerem fixados na sua agenda radical, este Senado continuará a fazer o trabalho que os Fundadores [do país] lhe atribuíram, que é o de manter estas ideias terríveis na linha.” Ou seja, não me venham com alterações às leis eleitorais, que não têm hipótese nenhuma.

Desta vez não houve sequer o pudor de tentar mascarar a realidade; um dos partidos do poder não pretende mais fingir que a democracia existe, ou tem de ser aperfeiçoada. Leis que não lhe interessam, por melhores que sejam para o país, nem vale a pena apresentá-las.

Se isto não é o fim da democracia, então a democracia é apenas uma palavra de estilo.