Para um português típico, a questão da divisão das línguas é bastante clara: nós falamos português. Os espanhóis falam espanhol. Os franceses falam francês. Podemos acenar com a miríade de confusões que desmancham a limpeza do nosso mapa linguístico. Não importa: a questão é fácil, pelo menos no que toca à nossa língua: português é português. Qual é a dúvida?
Então e o galego? Dirão muitos: «Chama-se galego, não se chama? Então não é português. Ainda por cima soa a espanhol…»
O problema é que, no caso de línguas muito próximas, os nomes que lhes damos não são um bom critério para avaliar a diversidade ou a unidade das ditas. Vejamos dois casos…
Rumamos a Valência
Comecemos pela situação linguística na Comunidade Valenciana.
Em Valência, para lá do espanhol, há outra língua oficial, denominada no Estatuto de Autonomia como «valenciano».
Ora, a grande discussão lá por terras de Valência é esta: será o valenciano um outro nome para o catalão? Ou será uma língua própria? Note-se que os valencianos — aqueles que falam a língua — não mudam de maneira de falar de acordo com aquilo que pensam sobre a questão. Por outro lado, a compreensão mútua entre valencianos e catalães está assegurada.
Então, que consequências tem esta discussão? Tem algumas. Por exemplo, os defensores duma língua valenciana separada não aceitam que se apresentem aos alunos livros da literatura catalã nas aulas de valenciano; afinal, é uma língua separada. Já os valencianos que defendem o valenciano como outro nome para o catalão acham muito bem que se estudem obras catalãs nas salas de aula de Valência. Depois, temos a norma: os que defendem a separação entre as línguas defendem uma ortografia e um léxico que se afastam propositadamente da ortografia oficial catalã e do léxico usado na Catalunha.
Já os catalães, diga-se, consideram o valenciano como outra forma da sua própria língua e, nas escolas, as obras valencianas são dadas nas aulas de literatura catalã. Basta pensar em Tirant lo Blanc, uma das obras mais famosas da literatura nesta língua, escrita pelo valenciano Joanot Martorell.
Quem estiver interessado em saber mais sobre as tensões que se escondem por trás do nome que se dá a uma língua, comece por ler o livro Quem fala a minha língua? (Através, 2013), uma colecção de ensaios de vários autores sobre este assunto.
Não é difícil criar uma língua
Olhando para a nossa língua, antes de nos abalançarmos para a discussão que está no título deste pequeno texto, rumemos ao Brasil.
Teria sido possível, no momento da independência, criar uma língua nova. Bastava integrar na norma algumas formas populares do português brasileiro (falo do vocabulário e estruturas gramaticais), estabelecer uma nova ortografia e criar o nome de «língua brasileira». Pronto: estava feito.
Note-se: num mundo alternativo em que o Brasil tivesse criado uma língua brasileira, ninguém teria mudado a maneira de falar no momento da decisão. Os brasileiros continuariam a mesma língua, mas dar-lhe-iam outro nome. Claro que aquilo que falavam seria facilmente distinguível do português de Portugal, mas isso também acontece na nossa versão do mundo, em que o nome da língua é o mesmo. Independentemente do nome da língua, portugueses e brasileiros foram falando, escrevendo e desenvolvendo a língua à distância de um oceano e com influências diversas.
Este afastamento não é suficiente para que deixemos de nos compreender — e também não seria no mundo alternativo em que o Brasil tivesse criado a tal língua brasileira. O nome que se dá à língua e a criação de uma norma autónoma não cortam, de imediato, a possibilidade de comunicar. Nem de imediato, nem durante muito tempo… Mas criam, claro está, uma barreira mental e política que alimenta o distanciamento linguístico.
Em relação ao Brasil, temos a distância e a indiferença, mas a língua é ainda vista como comum por grande parte de portugueses e brasileiros (quando pensam nisso) e as duas normas ainda estão muito próximas. Assim, há leitura de alguns livros brasileiros nas escolas portuguesas, ouvimos os brasileiros na televisão sem precisar de legendas, não traduzimos livros de literatura brasileira (embora, em certo tipo de livros, se note algum tipo de adaptação) e conversamos bem uns com os outros, para lá das picardias típicas de povos próximos e de algum medo do Brasil que uns quantos portugueses apresentam como sintoma de alguma insegurança (digo eu). A língua continua a divergir, mas continuamos a aproveitar as proximidades — o que se faz de forma muito mais saudável quando não há imposições de unidades artificiais.
Portanto: o nome da língua pode sublinhar diferenças ou manter uma unidade decidida para lá do uso real da língua. Com diferenças comparáveis às diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil (provavelmente, as diferenças até serão menores), alguns valencianos pretendem criar uma língua separada. Mas claro que a questão não é estritamente política: é política e é também emocional…
E enquanto discutimos os nomes e as divisões, as línguas, na boca dos falantes, vão mudando ao seu ritmo próprio.
Como muda uma língua?
As línguas avançam pelo tempo de forma espantosa: conversamos com os nossos filhos e eles criam a complexa maquinaria mental necessária para produzir, continua e maravilhosamente, a mesma língua dos pais, com todo o intrincado e caótico sistema de hábitos e regras mais ou menos lógicas a que chamamos «português».
Na escola, tomamos consciência de algumas dessas regras, aprendemos a ler e a escrever — o que é outra maquinaria um pouco mais artificial, mas também mais difícil de aprender — e aprendemos a organizar o discurso, a seguir algumas regras de etiqueta linguísticas e, quando a coisa corre bem, a debater uns com os outros com civismo e proveito — tudo importantíssimo, mas bem menos espantoso que a aprendizagem inicial da língua toda. Pelo caminho, também aprendemos a aproximar a nossa máquina linguística daquilo que é mais normal na sociedade em que vivemos — aproximamo-nos da norma, pois então.
A máquina que temos na cabeça nunca é igual à dos nossos pais: afinal, nós ouvimos a língua dos pais, dos amigos, dos familiares, dos professores, das pessoas na televisão, das pessoas na rua… É desse magma linguístico que extraímos a informação para criar a nossa máquina linguística. E funciona! A maneira como o cérebro humano consegue este feito ainda não está compreendida por completo, mas lá que é espantosa, sem dúvida que é.
A interacção entre o que aprendemos dos pais e aquilo que ouvimos na escola, os textos a que somos expostos, a nossa própria vida… — tudo isto leva a que a língua esteja sempre a mudar. Vemos isto na pronúncia, no vocabulário, nas conotações e nas definições das palavras. Há um livro sobre os mecanismos que estão por trás da mudança linguística que recomenda aos interessados: Words on the Move, de John McWhorter. Embora o livro seja sobre o inglês, aquilo que aprendemos vale para todas as línguas: todas mudam, excepto as línguas mortas.
A língua muda, pois então — mas muda devagar. As crianças aprendem a recriar a máquina linguística dos pais de maneira bastante mais correcta do que imaginamos — o que se passa é que é muito mais fácil notar as pequenas diferenças, que irritam muita gente, do que sublinhar a incrível continuidade da língua ao longo dos séculos.
O galego e o português
E chegamos ao galego — isto porque o galego é uma prova de que a língua muda, mas muito devagar. Quando Portugal se tornou independente, já se falava em toda a Galiza de então algo que reconheceríamos como a nossa língua. No momento da independência, criou-se uma barreira política entre Portugal e aquilo que restou da Galiza. É claro que esta barreira era muito mais porosa do que pensamos hoje em dia — afinal, não houve guardas-civis a vigiar a fronteira durante séculos e séculos —, mas ninguém desmente que os portugueses começaram a viver como comunidade separada dos territórios vizinhos.
Pois bem: apesar desta barreira com mais de 800 anos, aconteceu uma coisa espantosa. Se, no século XIX, ouvíssemos os galegos a falar, aquilo que sairia da boca deles ainda era algo muito parecido com o português sem que ninguém tivesse criado escolas, dicionários ou gramáticas para manter a proximidade da língua dum lado e doutro da fronteira. A língua que os contemporâneos de Afonso Henriques falavam mudou, mas mudou tão lentamente que, muitos séculos depois, as populações dum lado e doutro daquela que é uma das fronteiras mais antigas da Europa ainda conversavam sem esforço.
Peço que o leitor repare naquilo que acabei de dizer: uma das fronteiras mais antigas da Europa divide populações que, após 800 anos de separação, ainda conseguem conversar sem grande esforço.
Ora, foi também no século XIX que surgiram os movimentos de reivindicação literária das línguas de Espanha, faladas na rua, mas esquecidas na escrita, num movimento que tem paralelo nos muitos movimentos de cariz nacionalista desse século. (Para evitar confusões, convém dizer que o nacionalismo oitocentista não é uma mania dos bascos, catalães e galegos — inclui também os nacionalismos com Estado, como o espanhol, o italiano, o alemão, o português… Foi nesse século que muitos dos mitos nacionais foram criados e foi só então que a Nação, assim com letra grande, começou a suplantar o soberano como sustentação do Estado.)
Na Galiza, o movimento teve como nome Rexurdimento e teve como figura maior Rosalía de Castro. A história é longa e não cabe aqui, mas note-se: os galegos, no século XIX — e estamos a falar de praticamente todos os galegos — sabiam falar galego e este galego era mesmo muito parecido com o português falado do outro lado da fronteira, embora houvesse pouco reconhecimento mútuo dessa proximidade.
Os galegos sabiam falar galego, mas não sabiam escrever a língua. Aqueles que sabiam escrever, escreviam em castelhano. Quando começaram a surgir as obras em galego — a língua dos avós, que há séculos não era escrita a norte da fronteira —, os galegos usaram uma ortografia com forte influência castelhana.
Pois, ao longo do século XX, aconteceram algumas coisas curiosas: o galego continuou a ser falado, mas o castelhano foi ganhando força (os motivos são muitos: basta pensar na escolaridade da população, na televisão em espanhol…). Já em Portugal, a língua começou a uniformizar-se. Criámos uma ortografia nacional em 1911 (sim, só então tivemos uma ortografia estável), as escolas e os meios de comunicação social espalharam o português-padrão por todo o país e a língua começou a mudar de forma rápida entre as gerações tomando como norma um português baseado no que se fala em Lisboa, bastante longe da fronteira com a Galiza. Ainda hoje conseguimos ver como a língua é diferente entre os avós e netos minhotos: os avós estão mais próximos dum português com uma sonoridade que os galegos reconhecem como próxima da sua, enquanto os netos têm a língua a deslizar em direcção a um lisboeta com sabor nortenho.
Na Galiza, depois do final do franquismo, o galego tornou-se oficial. Foi então que surgiu a opção: ou bem que o galego oficial usava a ortografia com características espanholas («ñ», «ll», «z») ou assumia a proximidade com a língua a sul do Minho e escolhia uma ortografia com «nh», «lh», «ç», etc.
Esta última ortografia chama-se «reintegracionista», pois tenta reintegrar o galego no espaço dos povos de língua galega ou portuguesa. Esta ortografia próxima é quase indistinguível do português escrito, não fosse e uma ou outra opção que reflecte as diferenças fonéticas entre galego e português (por exemplo, «associaçom» em vez de «associação»).
Note-se que os textos reintegracionistas, para lá da ortografia, também costumam escolher um vocabulário mais próximo do português. (Já agora, fica aqui anotado que muitas palavras perfeitamente correntes e formais em galego são palavras portuguesas, mas do registo popular. É assim que temos um Sindicato Labrego Galego—Comissões Labregas que nunca falha: deixa sempre os portugueses a rir.)
Nesta luta entre ortografias (que decorreu durante os anos 80), ganharam os defensores da ortografia com «ñ» e o galego ensinado na escola é o galego com uma ortografia bastante diferente da ortografia portuguesa. Temos «A Coruña» em vez de «A Corunha», «camiño» em vez de «caminho», etc. No entanto, o reintegracionismo manteve-se como alternativa usada por muitos galegos. Para quem não conhece, pode encontrar textos em galego reintegracionista no Portal Galego da Língua.
Esta descrição não transmite, claro está, nem a complexidade da questão (cada uma das opções inclui várias tendências) nem a força das emoções que esta guerra levanta na Galiza. Não será inútil recordar que a discussão se faz num contexto em que a língua se vê a perder falantes a cada dia que passa.
Simplificando bastante, podemos encontrar duas atitudes perante a língua, alinhadas com a divisão que descrevi acima:
- Muitos galegos defendem o galego enquanto língua autónoma, não querendo confundi-la com o português. A separação política é velha de muitos séculos e a língua seguiu caminhos diferentes dos dois lados. Mesmo assim, alguns destes galegos não deixam de ter perfeita noção da proximidade entre o português e o galego e aproveitam essa proximidade para ler em português e conversar com portugueses.
- Os reintegracionistas defendem que uma ligação mais estreita ao português tem fundamentos históricos e permite combater o verdadeiro perigo para o galego: a sua substituição pelo espanhol, que não só lhe tira espaço de uso social como vai também desfigurando a língua, na pronúncia e no vocabulário, até torná-la numa mistura de galego e espanhol.
Mas são a mesma língua ou não?
Antes de tentar responder, podemos olhar para aquilo que é factual. Primeiro: esta pergunta só se faz naqueles casos em que as línguas estão tão próximas que podem funcionar como língua única (se houver vontade).
Segundo: existem galegos, hoje em dia, que olham para o português e o galego e optam por vê-los como a mesma língua. Tentam ver televisão portuguesa, lêem livros em português — e por aí fora.
Terceiro: se consideramos o português e o galego como línguas separadas, serão certamente das línguas mais próximas que encontraremos em todo o mundo.
Ainda uma curiosidade: há milhares de galegos que se inscrevem para aprender português nas escolas de idiomas da Galiza. Note-se que este interesse pela língua portuguesa vai muito para lá das divisões entre as duas normas da língua galega.
E nós, em Portugal? Podíamos considerar o galego como outra variedade da nossa língua, com outro sotaque, algum vocabulário diferente e outro nome? Podíamos, mas não vai acontecer: não há nem conhecimento suficiente entre os portugueses nem interesse da nossa parte. Para nós, os galegos são espanhóis e isso, para a nossa consciência histórica, é algo que nos impede de imaginar qualquer tipo de comunidade, mesmo que meramente linguística.
Da minha parte, não tenho qualquer interesse em alimentar uma relação de cariz político entre Portugal e a Galiza — e também não quero andar a dar conselhos sobre a ortografia e o vocabulário que os galegos devem usar. Andar a propalar a unidade do galego e do português em Portugal quando, a esse propósito, nem os galegos se entendem parece-me não só inútil como contraproducente.
Mas o belo da questão, do lado português, é que não temos de nos meter na discussão galega nem proclamar a tal unidade: cada um de nós pode aproveitar-se impunemente da proximidade entre o galego e o português. Sem grande dificuldade, podemos aceder a outra literatura e conversar, sem mudar a maneira de falar, com milhões de vizinhos — ficamos mais próximos de boa gente, boa literatura, boa conversa e boas oportunidades.
Pessoalmente, ando a aproveitar esta proximidade. Tenho lido em galego, tenho conversado muito com galegos, tenho até viajado pela Galiza. Todo este texto serve como convite para que mais portugueses aproveitem esta ponte linguística.
Manuel Rivas, um escritor galego, escreveu as primeiras palavras que li em galego, num livro chamado Ela, maldita alma, que um dia comprei num supermercado de Vigo só porque sim:
Aquela primavera chegara axiña e en demasía. Á hora do café, pola fiestra que daba á horta, Chemín mirou a festa de páxaros na vella maceira florida.
Note-se que esta é a ortografia do galego mais distante da nossa. As opções vocabulares soam-nos estranhas — mas deliciosas. Não precisei de aulas para ler o livro, apesar das saborosas diferenças. Até há palavras que nos lembram velhos textos portugueses, como aquela «asinha», escrita como «axiña»...
Uma confissão: não consigo aprender galego. Ou seja, por mais que leia galego e converse com galegos, as palavras que me saem são sempre as minhas… E chegam! Talvez esta confissão seja a minha resposta — pessoalíssima — à pergunta do título.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
Comentários