A democracia é a tese de que todos os cidadãos de um país têm os mesmos direitos, ponto. É também o princípio de que todos podem exprimir livremente as suas ideias, ponto outra vez.
Todos sabemos que não há democracias perfeitas. Logo para começar, havendo cidadãos muito ricos e muito pobres, muito cultos e muito ignorantes, a perfeição democrática é difícil. Também sabemos que uma democracia não se define só pelo facto de haver eleições para escolher os governantes. Há mil maneiras de as tornar enganadoras e até inúteis. Mas a ideia de democracia é um mantra universal, tanto que mesmo as mais indubitáveis ditaduras — como a Federação Russa, por exemplo — se sentem obrigadas a ter eleições, mais que não seja para dar legitimação popular aos ditadores.
A verdadeira democraticidade do sistema pode ser verificada segundo vários indicadores, e diversas organizações tentam fazer essa validação. O “Democracy Index” do jornal “The Economist” é um deles, e uma referência fiável — se não tem a assinatura mas sabe inglês, pode recorrer a este pdf.
Há muitas maneiras de perverter uma democracia. Mesmo excluindo as ditaduras óbvias, quer sejam de esquerda ou de direita, muitos países considerados democráticos realmente não o são, porque os seus governos recorrem a expedientes, uns mais descarados, outros mais discretos, que subvertem o tal princípio da liberdade de escolha dos cidadãos. Além disso, o sistema democrático, uma vez instalado, não é garantido para sempre, e repô-lo revela-se uma tarefa mais difícil do que criá-lo — veja-se o caso da Polónia, onde Donald Tusk está com grandes dificuldades em restitui-lo após a iliberalidade e o clientelismo dos anos em que o PIS (Partido Lei e Ordem) esteve no poder.”
No caso concreto dos Estados Unidos, a primeira constituição foi feita com a intenção expressa de “impedir a tirania”, isto é, que o Presidente tivesse poderes excessivos. Para isso foi criado o famoso sistema de “checks and balances” (controles e equilíbrios) que impediria o executivo — que na Europa se chama Governo e lá Administração — se impusesse ao Legislativo — o Congresso, bi-cameral — e ao Judicial — Supremo Tribunal e uma infinidade de tribunais estaduais e jurisdicionais.
O Presidente é escolhido por um colégio eleitoral formado por representantes de cada um dos 50 Estados, sendo que nos Estados em que os eleitores lhe deram maioria, todos os representantes desses Estados votam nele. É o que se chama uma eleição indirecta; não funciona como um homem, um voto, uma vez que os colégios eleitorais ampliam a diferença entre os candidatos. Foi o caso da eleição presidencial de 2016, em que Hilary Clinton teve mais três milhões de votos populares do que Donald Trump, mas perdeu no Colégio Eleitoral dos representantes estaduais.
No Congresso, a Câmara dos Representantes tem 435 membros, distribuídos proporcionalmente segundo a população dos Estados. No Senado, cada Estado tem dois senadores, independentemente da sua população.
No Supremo, há nove juízes, que exercem até morrer. Quando um morre, o Presidente escolhe um substituto, que tem de ser aprovado pelo Congresso. Por este sistema, certos presidentes, como Trump, chegam a escolher três juizes, enquanto houve quatro que não escolheram nenhum.
De 1789 para 2024, o mundo mudou, a política tornou-se mais complexa e a Constituição, sendo feita sem referências anteriores, mostrou ser inoperante em muitos dos seus controlos. Mas, sendo o padrão fundador dum país sem passado, ganhou uma aura sagrada. Ninguém pode, ou quer, mudar a Constituição de 1789. Ao longo do tempo, recebeu 27 emendas, destinadas sobretudo a clarificar aspectos do documento, não a modificá-lo.
Todavia, o tempo demonstrou que a Constituição não conseguiu toda a Liberdade, Igualdade e Fraternidade que pretendia. Não considerava os negros como cidadãos e não dava os mesmo direitos às mulheres, “faltas” que foram corrigidas com emendas. Mas, sendo presidencialista, acaba por dar ao Presidente mais poderes do que muitos reis acabaram por perder com os acontecimentos da Idade Contemporânea. O Presidente manda sozinho e, em certos casos, o Congresso precisa de ratificar; quando a questão é constitucionalmente duvidosa sobra ao Supremo, que aliás pode recusar-se a discuti-la, o que indica que aceita o que já está.
Uma outra diferença importante em relação à Europa (especificamente a Portugal) é que os funcionários públicos podem ser despedidos como os privados e os organismos federais e estatais podem ser criados e extintos à vontade pelo Presidente e pelos governadores dos Estados — há excepções, e a possibilidade de recorrer aos tribunais, mas no geral é assim.
Quem sabe estas coisas que me perdoe a chatice de tantas explicações, mas são indispensáveis para compreender o que se está a passar no país e o que quase certamente acontecerá em 2025.
Contudo, antes de entrarmos na actualidade, impõe-se um breve histórico. Inicialmente, os Republicanos eram os progressistas — veja-se o caso de Abraham Lincoln, considerado até hoje o melhor presidente — e os Democratas os reacionários. Entre 1929 e 1980 vários acontecimentos levaram a uma inversão de papéis: os Democratas tornaram-se liberais e os Republicanos conservadores — em termos europeus, os primeiros são de centro-direita e os segundos de direita. Não há uma esquerda representativa, embora se faça ouvir publicamente. Os democratas tornaram-se os defensores da igualdade racial, de género, LGBT, pró-aborto e outras, enquanto os republicanos optaram pelas bandeiras do cristianismo tradicional.
De 1979 a 1999, um republicano, Newt Gingrich, de que hoje pouco se fala, líder da Câmara dos Representantes, é creditado por muitos analistas como sendo o político que inaugurou o princípio de que os interesses do Partido estão acima dos interesses do país. O actual líder do Senado, Mitch McConnell, senador desde 1985 até hoje, tem sido o mais fiel seguidor desta política. Para não me alongar nas faltas de ética flagrantes que praticou até hoje, lembro duas: quando Barack Obama foi eleito, disse publicamente que o seu principal objectivo como líder do Senado era sabotar tudo o que o novo Presidente quisesse fazer; quando Obama quis nomear um juiz para o Supremo, Merrick Garland, em 2016 (a que tinha direito, pelo falecimento de outro) disse que nem consideraria a nomeação, porque Obama estava a perto do fim do mandato; mas na presidência de Trump acelerou o processo de aprovação de três juizes ultra-conservadores — Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett — esta última a três meses do fim do mandato de Trump.
Entretanto, McConnell anunciou que sai da política no fim deste ano, porque já não tem o favor do ex-presidente, uma vez que teve o atrevimento de reconhecer que ele perdeu a eleição de 2020… Mas já tem um sucessor, estratégico: o representante Republicano Mike Johnson, que decretou umas férias de duas semanas para a Câmara não ter de votar a ajuda à Ucrânia proposta pelo Presidente Biden.
A assim entramos na actualidade.
Como tem sido noticiado até à exaustão, hoje o Partido Republicano é o Partido de Trump. Será certamente o vencedor das eleições presidenciais deste ano; mas, ainda como pré-candidato — a Convenção Republicana que o escolherá ocorre entre 15 e 18 de Julho — já dá ordens aos congressistas sobre o que devem fazer. Não quer que a política anti-imigração do actual presidente seja aprovada, porque quer ser ele a aprovar a sua, depois de eleito; e mandou parar as ajudas à Ucrânia porque quer ser ele a “resolver o problema da Ucrânia em 24 horas.” Como tal é possível, não se sabe, mas calcula-se, uma vez que é um simpatizante declarado de Putin (e de Viktor Orbán, já agora).
Donald Trump é um caso único na política norte-americana e, que nos lembremos, na política mundial. Como é que um narcisista patológico (dizem os médicos), empresário desonesto e mentiroso compulsivo, com 81 processos a decorrer em tribunais estaduais e federais, que vão da violação à tentativa de golpe de estado, consegue ter o apoio entusiástico de cerca de 50% do eleitorado?
Não vou aqui listar todos os disparates, falsidades, acusações malévolas e políticas desastrosas que ele tem dito em público, para multidões e em frente às câmaras de televisão, porque não tenho espaço — nem estômago. Mas posso recordar quando ele, sendo Presidente, disse que acreditava mais em Putin do que nos serviços de informação americanos, louvou a sua amizade com Kim Jong Um, ameaçou os países da Europa que deixaria a Federação Russa invadir quem quisesse, prometeu acabar com a imigração porque os imigrantes são todos traficantes, violadores e bandidos — entre centenas de outras atitudes impróprias de quem tem a noção das responsabilidades. Talvez baste lembrar uma das suas frases mais famosas: “Posso matar a tiro uma pessoa no meio da 5ª Avenida, à luz do dia, que não serei preso.” Famosa pela ousadia provocadora e famosa porque, de facto, é verdade!
Mas Trump diz qualquer coisa e o seu contrário. Pode alegar-se que é inimputável. Pode-se achar surreal que todas as cabeças falantes do Partido de Trump — senadores, governadores, pessoas com cargos importantes — o vejam como uma certeza para Presidente em 2025 e o tratem com a devida deferência. Também pode ler-se os documentos que vários grupos estão a preparar em prol da sua próxima presidência, grupos esses constituídos por pessoas cultas, inteligentes e determinadas. São muitos, mas vou-me deter num estudo de 880 páginas feito pela Heritage Foundation, um “think tank” conservador de alto gabarito. O jornalista Carlos Lozada leu-o de fio a pavio e publicou um extenso artigo no “The New York Times” a pormenorizar o programa que a fundação congeminou para a presidência de Trump. Basicamente, trata-se de desmantelar todas as agências estatais que cuidam do ambiente, da ecologia, da segurança, de controlos vários sobre grandes empresas; e de substituir todos os funcionários públicos que não demonstraram subserviência por outros que seja leais — “loyalists”.
Lealdade será a porta de entrada para qualquer posto administrativo (não estamos a falar de postos políticos, nesses é óbvio), garantindo a prossecução das ideias presidenciais, no que serão apoiados por um Supremo Tribunal que já é trumpista e por um Congresso onde Trump tem a maioria numa das câmaras e pode vir a ter na outra.
Estou a falar de uma mudança tectónica no aparelho de Estado norte-americano e nas imprevisíveis — mas, certamente, terríveis — consequências para o resto do mundo. Alianças terminadas, ditaduras apoiadas, medidas ecológicas enterradas, agitação no comércio mundial… a lista é estarrecedora.
A pergunta é: como isto está a ser possível?
Sinclair Lewis escreveu um livro, em 1935, chamado “It Can’t Happen Here” — “Isso Não Pode Acontecer Aqui” — que narra, como o nome indica, uma situação em que os Estados Unidos se tornam uma ditadura. O livro é influenciado pelo clima da época, das ditaduras nazi-fascistas que então estavam na moda, mas o conceito pode ser usado na atualidade, em que “ditadura” é substituído por “regime autocrático” ou “democracia iliberal”.
É verdade, pode acontecer. Pior ainda, há fortes probabilidades de que aconteça.
E nem sequer vou falar, porque isto já vai longo, dos incontáveis movimentos de base, comunitários, de grupos de famílias, de igrejas diversas, que pululam em cidades grandes e pequenas a querer proibir livros, contra ideologias não-cristãs, contra a liberdade de expressão e as pessoas LBGT+, os negros, os pobres… Como é que grupos cristãos podem apoiar um homem que é uma espécie de anti-Cristo, é outra pergunta que fica no ar. Como é que o mundo anda assim para trás à vista de toda a gente?
Em total desespero, só nos resta rir. Não resolve, mas pelo menos morremos contentes! Para ajudar, deixo aqui um trecho do programa de Stephen Colbert em que ele fala desta situação. Entretanto, aproveitem bem estes meses antes da chegada do Armagedão!
Comentários