“Demonstrámos ao mundo que a Ucrânia continua a garantir a segurança alimentar global”, pôde constatar recentemente Zelensky, ao falar do novo corredor humanitário marítimo pelo qual a Ucrânia está a revigorar as exportações de bens agrícolas pelos portos do Mar Negro. Tais exportações, recorde-se, tinham sido interrompidas pelo fim, em julho, da Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, que até aí viabilizava a segura exportação marítima de alimentos ucranianos no contexto da guerra. Desde então, a Ucrânia criou o novo corredor, a estender-se por águas ucranianas, romenas, búlgaras e turcas e, em setembro, reiniciou as globalmente vitais exportações marítimas de bens alimentares ucranianos por meio da travessia do cargueiro Resilient Africa. Daí em diante, e até inícios de dezembro, o corredor foi usado por cerca de 200 cargueiros mercantes para aportar à Ucrânia e transportar com sucesso mais de 7 milhões de toneladas de bens alimentares e de outros produtos para portos distantes. 

Não obstante os portos ucranianos continuarem a ser alvo de frequentes bombardeamentos aéreos, a frota russa tem sido mantida à ilharga do novo corredor pelos sucessos militares que a Ucrânia tem alcançado no Mar Negro e na Crimeia ocupada (e, que contrastam com as contrariedades com que se tem deparado na sua contraofensiva terrestre). A Ucrânia, com efeito, passou os últimos meses a usar operações de comandos e ataques com drones e mísseis para arrasar navios e embarcações militares russas na região do Mar Negro e para assolar as capacidades logísticas, infraestruturais e antiaéreas da Rússia na Crimeia. Kyiv conseguiu assim mudar o equilíbrio de poder na região e compelir Moscovo a dispersar a maior parte da frota para águas mais seguras no Mar Negro oriental, o que libertou os portos ucranianos do bloqueio naval russo. Tudo isto, a par da criação do novo corredor humanitário, é apenas mais uma expressão do valor e da resiliência que desde o início da guerra tornam a Ucrânia numa forte inspiração e num modelo a seguir.

A importância estratégica do novo corredor não pode ser subestimada. Como apontado por Kyiv, a condição essencial para revitalizar a economia ucraniana e suster o setor agrícola é a capacidade de exportar pelos portos do Mar Negro. Adicionalmente, o corredor é imprescindível para abastecer os mercados com alimentos ucranianos e, de tal forma, garantir a segurança alimentar de África, Médio Oriente e outras regiões do Sul Global, na sequência do fim da Iniciativa dos Cereais às mãos da Rússia.  

A Iniciativa dos Cereais, que tinha sido criada por ONU, Ucrânia, Turquia e Rússia alguns meses após o início da guerra, veio na altura possibilitar a retoma das exportações marítimas de bens agrícolas ucranianos, até aí obstruídas pelo bloqueio naval russo. Enquanto esteve em operação, entre agosto de 2022 e julho de 2023, permitiu fazer afluir quase 33 milhões de toneladas de bens agrícolas ucranianos aos mercados e, de tal forma, aumentar a disponibilidade mundial de alimentos e mitigar os impactos globais da guerra, pela estabilização dos preços dos alimentos e pelo alívio da insegurança alimentar global. Cerca de 57% das exportações totais e 65% das exportações de trigo foram para países em desenvolvimento, com a Iniciativa a possibilitar ainda o abastecimento humanitário de algumas das populações mais vulneráveis do planeta com centenas de milhares de toneladas de trigo ucraniano pelo Programa Alimentar Mundial e pelo empreendimento Cereais da Ucrânia. A Iniciativa dos Cereais do Mar Negro foi renovada várias vezes até a Rússia sair a 17 de julho, com base na alegação de que as exportações agrícolas russas estavam a ser alvo de restrições a níveis como finança, seguros e logística – muito embora não haja sanções sobre tais exportações e as exportações russas de cereais tenham atingido muito elevados volumes durante o funcionamento da Iniciativa. 

A Ucrânia está agora decidida a dar continuidade ao humanitariamente indispensável trabalho da Iniciativa dos Cereais, pelo uso do novo corredor humanitário para, como afirmado por Kyiv, “restaurar rotas vitais de abastecimento alimentar às regiões que mais delas precisam”.

Não obstante, a navegação no corredor decorre face a ameaças militares, como sejam minas marítimas ou potenciais bombardeamentos. Há assim um acordo para contemplar a atividade mercante marítima com seguros contra riscos de guerra, para além de que o próprio corredor evita águas internacionais, desenvolvendo-se junto à costa ucraniana e continuando depois ao longo das águas de estados NATO: Roménia, Bulgária e Turquia. Porém, o corredor também é protegido por defesas costeiras, e Kyiv intimou que retaliará pesadamente na eventualidade de ataques pela Rússia – com tal intimação a ser consubstanciável pelos danos que a Ucrânia tem infligido às capacidades russas na Crimeia e no Mar Negro.

Porém, e não obstante a frota russa tenha sido largamente retraída para o Mar Negro oriental, o facto é que a Rússia continua a ter superioridade aérea na região, a que tem recorrido, do fim da Iniciativa dos Cereais em diante, para bombardear insistentemente os portos ucranianos do Mar Negro e do Danúbio com mísseis e drones. Assim, e desde 17 de julho, a Rússia já atingiu pelo menos 167 infraestruturas, 122 veículos e 7 navios civis e destruiu cerca de 300 mil toneladas métricas de cereais ucranianos – com os danos causados a reduzirem o potencial de exportação de cereais da Ucrânia em nada menos que 40%.

Esta guerra de atrição sobre as capacidades de exportação da Ucrânia é uma forma particularmente feia de magoar a economia ucraniana. E, é também uma forma de criar fome no mundo, uma vez que, como apontado pelo Presidente do Conselho Europeu Charles Michel, ao atacar os portos ucranianos, o Kremlin está a privar populações vulneráveis dos alimentos de que desesperadamente precisam.

Não obstante, parece ser claro que a Rússia não desistirá de ameaçar as exportações ucranianas. Muito embora também saiba que tem de estudar cautelosamente as suas opções de ação no Mar Negro, uma vez que este é agora, e cada vez mais, um jogo a dois jogadores, com uma Ucrânia que responde de volta. E, que tem aliados – que, mesmo com as presentes dificuldades na criação de consensos políticos, estão dedicados a disponibilizar à Ucrânia a assistência de que precisa para proteger o seu espaço aéreo e as suas águas territoriais, tal como para expandir a campanha militar no Mar Negro e na Crimeia. A Ucrânia está a fazer frente a uma agressão imperial, impiedosa em métodos e inabalável em persistência e, em muito larga medida, está a fazê-lo em prol da segurança de toda a Europa e do Ocidente. Toda a assistência que possa receber é pouca. Acima de tudo, parece ser essencial dar-lhe as capacidades necessárias para obter superioridade aérea no seu próprio território. Como apontado por Zelensky, 2024 tem de ser o ano em que a Ucrânia expulsa a Rússia dos seus céus. O avanço estável do programa de F16 e a vigorosa disponibilização de capacidades antiaéreas e de mísseis de longo alcance parecem ser essenciais a este nível. Porém, a Ucrânia também precisa de capacidades de desminagem das águas. E, é importante que haja uma firme continuidade da assistência à reconstrução de infraestruturas portuárias destruídas. 

A segurança das exportações ucranianas também poderia ser garantida pela revigoração da Iniciativa dos Cereais. A ONU e a Turquia têm, assim, trabalhado para trazer a Rússia de volta à mesma Iniciativa. Porém, a Rússia tem exibido a maior inflexibilidade negocial, sinalizando que só voltaria no caso de o Ocidente aquiescer a um alívio de sanções. A Rússia sabe, porém, que o Ocidente nunca aceitaria um tal cenário, a não ser na presença de motivos suficientemente fortes para tal – pelo que há que ver se Putin não tenta criar uma tal conjuntura no palco mundial.

De resto, a inflexibilidade de Moscovo também tem sido expressa na forma como tem ignorado os apelos para a retoma da Iniciativa por atores como Índia, África do Sul e Conselho de Cooperação do Golfo, ou ainda por vários dos líderes africanos presentes na última cimeira Rússia-África – incluindo o presidente da União Africana, que falou do modo como o acesso a cereais ucranianos salvaria vidas africanas.

Pois bem, este autor argumentaria que é precisamente junto dos países africanos e do restante Sul Global que a Ucrânia poderia procurar apoio potencialmente decisivo para o corredor humanitário do Mar Negro. Kyiv poderia tentar estabelecer uma cooperação com um número de estados destas regiões do globo sob o mote de garantir o estável afluxo de bens agrícolas aos mercados em prol da segurança alimentar global. Uma tal cooperação poderia ser negociada e estabelecida diretamente entre estados, ou ainda sob a égide do Secretariado da ONU. Os estados participantes poderiam prestar assistência à Ucrânia na monitorização da segurança dos cargueiros e dos portos ucranianos e poderiam participar na condenação institucional de qualquer agressão aos mesmos. A mera presença de tais estados no corredor tenderia a protegê-lo mais que qualquer sistema militar. A Rússia, afinal, depende hoje do Sul Global, já que é nestas regiões do globo que encontra a maioria dos seus interlocutores remanescentes. Ser-lhe-ia imponderável, dos pontos de vista diplomático e de relações públicas, atacar um corredor humanitário no qual vários estados africanos, asiáticos e latino-americanos estivessem envolvidos. A Ucrânia passou os últimos meses a desenvolver relações com África e o mundo Árabe, Índia e Sudeste Asiático, Ilhas do Pacífico, Brasil e Caraíbas. Porque não recorrer a estes contatos para trazer o Sul Global para o corredor humanitário?