O que foi a #womansmarch, que mobilizou tantas mulheres em cidades diferentes? Se nos pudesse ocorrer a manipulação mediática, através da escolha do ângulo para a fotografia, a multiplicação das publicações no Instagram, a par com o número de pessoas que essas imagens iam registando, de forma instantânea e continuada, prova o contrário.
A quem se deve tamanha capacidade de mobilização?
Que choque de valores pró e anti-Trump e que reacção para os que são directamente afectados?
A diversidade de pessoas é óbvia, assim como os direitos e valores que a sociedade considerava garantidos e que se perdem de um dia para o outro. Figuras públicas e menos públicas insurgem-se. Halsey contribui para a mudança com um tweet e doa 100.000 dólares à organização Planned Parenthood. Outras celebridades fazem o mesmo, alegadamente em nome de Mike Pence. A ironia toma conta da web. Estamos, de facto, à distância de um clique para tomar uma atitude, num altura em que também uma assinatura assume maiores consequências do que milhares de pessoas nas ruas. E não apenas mulheres, a política de Trump afecta, na realidade, todas as pessoas.
Apesar dos media proclamarem um discurso pró-feminista de defesa da causa das mulheres da sua capacitação (o famoso empowerment), o tema pode ser observado a partir da abrangência da igualdade e dos direitos: femininos, num determinado contexto, masculinos em outros.
A questão do feminismo não deverá servir para separar aqueles que consideram que existe desigualdade social, que há preconceito de género, cor e raça, que o acesso está mais facilitado a uns do que a outros, que moralmente existem percepções que merecem ser alteradas. A palavra também não pode ser motivo de embaraço. Como em todas as correntes há sempre posições extremadas ou ideias radicais que prejudicam o próprio conceito.
Mais do que levantar a bandeira dos direitos iguais, importa realçar em que medida a sociedade precisa de ajustes para ser mais igualitária. Não se trata apenas dos #oscarsowhite, expressão que se autonomizou e que agora pode ceder lugar a outra, da ausência de latinos entre os nomeados aos Óscares. Primeiro questionou-se a academia em relação às mulheres e Kathryn Bigelow ganhou o Óscar de melhor realizadora em 2010. Depois apontou-se a questão da cor e a academia deu uma resposta superior à que já antes havia dado, nomeando seis actores de cor para os Óscares, incluindo Viola Davis, com três nomeações, Joi McMillon que fica para a história como a primeira mulher de raça negra a ser nomeada para o Óscar de melhor edição, e Octavia Spencer, a primeira a ser nomeada depois de ter ganho um Óscar. Não nos esqueçamos de Dev Patel, representação do alargamento de horizontes à Ásia, num contexto de maior diversidade em Hollywood, cuja introdução de mais mulheres e negros como membros foi motivo de aplauso para a Academia. É também a primeira vez que há um actor negro em cada uma das categorias de representação e que um artista negro, Barry Jenkins, é nomeado para melhor realizador, argumento e melhor filme. Não é isto que faz do mundo um lugar melhor para se viver mas quer dizer alguma coisa sobre o tema #blacklivesmatter.
Preocupam-me as pessoas, independentemente do género ou raça. Por essa razão cortes na saúde, mesmo que atingindo directamente o sexo feminino terão, também, efeitos nos homens. Ou a forma como a TSU pode ter impacto no (des)emprego. Novamente as mulheres, uma vez que há mais desempregadas do que desempregados. Outros exemplos existem (a “pussy” de Trump), as frases feitas que repetimos incessantemente (ela, de saia curta que está “mesmo a pedi-las”), os estereótipos (o marido “ajuda” em casa) e os clichés que se reproduzem à exaustão, resultado de muitos anos e de uma educação que separava os meninos das meninas, demarcando o género e o que se esperava dele. A este nível já muito se fez e tantas vezes as mulheres caem em contradição quando tentam afirmar uma guerra dos sexos com a qual, parece-me, eles não se preocupam.
Se o mundo fosse justo a meritocracia dominaria o sistema de contratação e promoção nas organizações, independente do género, da raça ou opção sexual. Sabemos que não é assim. O estudo conduzido pelo CIEG (ISCSP - ULISBOA) comprova o que já sabemos: o Homem é naturalmente mau, com um apurado instinto de sobrevivência que o faz não olhar a meios para atingir os fins, apesar de ser socializado para moderar esse mesmo instinto, diferenciando o certo do errado, consciente das consequências das suas acções. Será que quando alguém faz piadas ou comentários ofensivos sobre o aspecto fisico de outra pessoa tem consciência de que isso é assédio sexual? De que a humilhação pessoal é assédio moral? Ou estamos apenas a ser um bocadinho maus, pisando o risco? Independentemente do género, porque acontece tanto a eles como a elas, o estudo “Assédio Sexual e Moral no Local de Trabalho em Portugal” indica que 16,5% da população activa em Portugal já sofreu pelo menos uma vez, durante a sua vida profissional, uma forma de assédio moral no trabalho, e que 12,6% já sofreu, pelo menos uma vez, durante a sua vida profissional, uma forma de assédio sexual no trabalho, que também acontece entre famosos e figuras nomeadas aos Óscares. Os resultados deste estudo não podem ser desvalorizados com base nas ideias pré-concebidas que temos sobre o tema e os comportamentos dos indivíduos. Eles são mais frequentemente vítimas de assédio moral (15,9%) enquanto elas, de assédio sexual (14,4%). Põem-se a jeito, dirão. Mesmo quando não põem e, por isso, hoje a Assembleia da República discute medidas para prevenir e combater esta questão.
De Trump aos pequenos (e grandes) assédios que ocorrem diariamente no local de trabalho e na vida, em geral, o problema disto tudo são as pessoas, as suas ideias e comportamentos, assim como uma cultura em que, demasiada liberdade, pode resultar em libertinagem, e excessivo controlo nos coloca numa situação de vigilância constante e auto-censura, com receio das consequências. Onde está o meio termo que nos permite viver em paz sem enfrentar pequenas e grandes batalhas, contra um colega ou chefe que acha que pode tudo e um que se acha chefe disto tudo e que, realmente, pode (quase) tudo?
Paula Cordeiro é, entre outras actividades consideradas (mais) sérias, autora do Urbanista, um híbrido digital que é também uma aplicação para smartphones. Baseado em episódios diários, o Urbanista é um projecto para restaurar a auto-confiança perdida e denunciar o preconceito social. Na verdade, os vários preconceitos sociais (raça, género, orientação sexual e outros difíceis de catalogar), embrulhados num estilo de vida saudável, urbano e divertido.
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