“Claro que não existe fim”, pensou, “as coisas seguem sempre adiante, até ao infinito.”Robert Musil, O Jovem Törless (Edição “Livros do Brasil”, 1987)
O exemplo de Greta Thunberg diz-nos que sim. É o exemplo flagrante dessa expectativa quando em Agosto de 2018, com 16 anos, iniciou a greve global das escolas exigindo acção urgente contra as mudanças climáticas. Com este gesto de resistência, iniciou um movimento civil internacional de grandes proporções com o mérito de colocar o tema nas agendas políticas internacionais e de moldar as atitudes duma geração inteira na defesa do meio ambiente.
Desde então a expectativa sobre o potencial transformador das crianças atingiu máximos históricos e este facto é um marco na história dos direitos da criança no mundo.
Outras crianças, advogadas de muitas outras causas, precederam Thunberg. Hydeia Broadbent é um desses exemplos. Nascida em 1984 em Las Vegas, no estado do Nevada, Estados Unidos da América, foi abandonada à nascença no hospital pela mãe biológica toxicodependente e seropositiva. Não era inevitável, mas Hydeia Broadbent testou positivo para o VIH quando tinha 3 anos e 5 anos quando desenvolveu SIDA. Adoptada, foi uma das primeiras crianças a fazer tratamentos com AZT e outros medicamentos antirretrovirais. Falecida em fevereiro de 2024, deixou o legado da criança lutadora, que a partir da sua própria condição de aparente fragilidade, finta o destino, e sobrevive durante quase quatro décadas à esperança de vida inicial.
A investigação no campo do desenvolvimento humano aponta para o período entre os 6 e os 12 anos como o momento no qual as crianças fazem conquistas cognitivas importantes, nomeadamente no modo como seleccionam e processam informações cada vez mais complexas. Hydeia é disso exemplo quando aos 6 anos de idade se torna activista contra a SIDA, papel assumido e afirmado como sendo a missão da sua vida. A sua primeira aparição televisiva é aos 7 anos, em 1992 no canal americano de televisão para crianças Nickelodeon. Ao lado da estrela da NBA Magic Johnson, (também diagnosticado com VIH), conta a sua história a uma audiência de milhões de crianças. Após esta experiência, as intervenções sucedem-se ao longo da década de 90, durante o período da sua infância, em locais diversos como escolas, igrejas, em eventos sobre VIH/SIDA, numa época onde a doença era particularmente estigmatizante para quem a contraía e sobretudo para quem assumia ser portadora.
Aos 11 anos, apresenta-se no talk show de Oprah Winfrey perante uma audiência de milhões de espectadores de idades diversas. Partilha o seu exemplo, consciencializado um público desconhecido, mas muito vasto, sobre a possibilidade de qualquer um, não só homossexuais ou consumidores de drogas intravenosas - como se acreditava nessa época, involuntariamente poderem contrair VIH. Descreve a debilidade particular do sistema imunitário do doente, propiciador no seu caso de fungos cerebrais, infecções sanguíneas, pneumonia e de outras perturbações anunciadoras, quase sempre, da morte iminente. A pior parte, segundo ela, seria “quando os seus amigos morrem”. Em 1996 participa na Convenção do Partido Republicano, afirma que apesar da sua condição poderá ser a primeira mulher presidente dos Estados Unidos, acrescentando “Eu sou o futuro e tenho SIDA”.
Outra das suas lutas foi combater a discriminação dos portadores do vírus da SIDA com informação. Ryan White (1971-1990), adolescente activista, também portador do VIH/SIDA, precedeu Broadbent numa época onde foi obrigado a lutar pelo direito de frequentar escolas públicas no Estado do Indiana, também nos Estados Unidos da América, antes de sua morte, aos 18 anos, em 1990. Contraiu o VIH numa transfusão de sangue por ser hemofílico.
O activismo muito particular de Hydeia Broadbent, neste caso, alinhado com a sua própria condição de doente, ilustra bem os resultados de estudos de investigadoras como Inez Cloughton, que ao estudarem os movimentos infantis como o
movimento global de crianças e jovens, destacaram o potencial transformador da acção infantil activista na medida em que propicia um sentimento de unidade e de esperança nos processos de ligação entre pessoas, grupos e organizações no mundo.
Hoje, as crianças são criticadas frequentemente, pelo modo como se exprimem politicamente nas redes sociais e pela utilização que fazem das redes sociais como fórum de expressão política e de activismo, mas estudos comprovam a relação entre activismos online como trampolim privilegiado para activismos offline.
Quando criança, num mundo ainda analógico, distante do imediatismo actual do digital, a equipa médica dava uma esperança de vida de 5 anos a Hydeia. Sobreviveu, apesar disso, quase quatro décadas e com isso o mundo ganhou uma voz durante quase 40 anos pelos direitos das pessoas com VIH/SIDA. Morreu no passado mês de Fevereiro aos 39 anos. Loren Broadbent, o pai, confirmou a morte da filha afirmando não saber a causa. Relembrou o ataque cardíaco e o possível derrame de Setembro de 2023 que a deixara hospitalizada e em reabilitação desde então...
Logo após a confirmação da sua morte o seu parceiro activista, Magic Johnson, deixou uma mensagem na rede social X (antigo twitter):
“Estou destroçado ao saber do falecimento de uma jovem incrível, activista e heroína Hydeia Broadbent. Em 1992, fiz um especial da Nickelodeon chamado “Uma Conversa com Magic (Magia)”, e Hydeia, de 7 anos, e eu, causamos um impacto extraordinário. Hydeia mudou o mundo com a sua coragem ao falar sobre como viver com o VIH afectou a sua vida desde o nascimento. Dedicou a sua vida ao activismo e tornou-se uma agente de mudança na luta contra o VIH/SIDA. Ao falar abertamente tão jovem, ajudou muitas pessoas, jovens e velhas, porque não teve medo de partilhar a sua história e permitiu que todos vissem que aqueles que vivem com o VIH e a SIDA eram pessoas comuns e deveriam ser tratadas com respeito. Graças a Hydeia, milhões de pessoas foram ensinadas, os estigmas foram quebrados e as atitudes em relação ao VIH/SIDA mudaram. Sentiremos falta da sua voz poderosa neste mundo. Cookie e eu rezamos pela família Broadbent e por todos aqueles que conheceram e amaram Hydeia.”
Hydeia é por tudo isto mais do que a fotografia de uma criança numa lista de gente célebre desaparecida em 2024, organizada, quem sabe, a propósito da morte de uma outra celebridade também activista, mas num outro campo, o campo cultural - Bernard Pivot, jornalista, escritor e radialista francês.
Hydeia é um símbolo em si mesmo no qual crianças e adultos poderão encontrar forças de superação para os seus combates, tanto nas derrotas, como nas vitórias. Este fenómeno representará então para muitos uma verdade psicológica importante capaz de gerar transformação nas pessoas, nos grupos e nas sociedades. Neste caso, muito em particular, a partir da afirmação de duas verdades aparentemente simples: a SIDA existe e que até as crianças poderão ter algo a ensinar-nos sobre isso.
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