Desde 1998 que a Escócia tem um parlamento próprio, com 129 deputados (cortesia de Tony Blair, que queria ser simpático com toda a gente) e cujas eleições correm no dia anterior às eleições municipais britânicas. Portanto, os escoceses votam duas vezes, uma para os seus deputados em Edimburgo e outra para os presidentes de câmara e assembleias municipais.
Antes de chegarmos à actualidade, convém lembrar que as relações entre a Escócia e a Inglaterra têm uma história muito áspera; durante séculos, os reis em Londres tentaram absorver as terras altas do Norte numa “Grã-Bretanha” (a ilha que hoje inclui a Inglaterra, Gales e a Escócia). Encontraram uma enorme resistência das tribos locais, que se guerreavam entre si, mas se uniram todas quando para escorraçar os ingleses. Também houve tentativas de incorporação através de casamentos reais, o que nem sempre era fácil já que a Escócia nem sempre tinha um rei que todas as tribos aceitassem.
Para encurtar uma longa história recheada de muitas batalhas, traições e golpes, finalmente, em 1603, foi o rei da Escócia, James VI, quem herdou a coroa inglesa, que já incluía a Irlanda, e se mudou para Londres. Data desta altura a sobreposição da cruz encarnada inglesa com o xis branco em fundo azul escocês e o xis encarnado em fundo branco da Irlanda – a famigerada "Union Jack" que conquistou os sete mares. Contudo, a união não foi pacífica e só em 1707 (há pouco mais de trezentos anos), surgiu a primeira rainha de facto do Reino Unido, Anna.
Seguiu-se um período de assimilação, mais ou menos pacífico. Os escoceses lutaram com batalhões próprios nas guerras do Império e até hoje afirmam, um tanto exageradamente, que os grandes intelectuais ingleses eram escoceses – James Watt, o inventor da máquina a vapor, Alexander Fleming, o cientista que descobriu a penicilina e Alexander Cummings, que patenteou o autoclismo, são três exemplos de uma extensa lista. A verdade é que, durante os dois séculos que vão até ao princípio do século XX, a maioria dos escoceses considerava-se britânica e enquadrada na sociedade inglesa centrada em Londres. Edimburgo foi sempre uma capital de província. Tem boas universidades e muita actividade cultural, mas nada que se compare com Londres, nem de longe.
Como consta na História, o Reino Unido teve o seu primeiro baque interno quando a Irlanda conquistou a independência, em 1922, pela força das armas. Nessa época, o nacionalismo escocês estava anestesiado e era reclamado por uma minoria de esgroviados, sem repercussão nas massas. A Escócia votava à esquerda no contexto de Westminster, com deputados dos dois partidos britânicos clássicos, trabalhistas e conservadores. O SNP (Scotish National Party) surge em 1934, com a junção de dois partidos locais, e durante anos, poucos deputados conseguia. Essa situação começou a mudar na década de 1960, mas só vinte anos depois é que ganhou massa crítica, graças à direcção de Alex Salmond, que conseguiu o início da transferência do voto trabalhista para o seu partido.
A questão sempre foi a mesma, sendo agora ainda mais evidente com o Brexit: os escoceses fazem melhor em puxar o parlamento de Westminster para a esquerda, ou seria mais interessante desligar-se dos interesses londrinos e defender a sua nação? Por outras palavras, a Escócia está melhor fazendo parte do Reino Unido (RU), ou como membro da União Europeia (UE)? Enquanto o RU pertenceu à UE, o problema não se colocava, e os nacionalistas do SNP tinham de enfrentar sempre o cepticismo do eleitorado.
Salmond dirigiu o partido, foi deputado e, depois da reforma de 1998, primeiro-ministro, até 2014. Era o herói incontestado do nacionalismo e da esquerda, conseguindo que o SNP ultrapassasse finalmente os trabalhistas, e depois os conservadores — ou seja, colocando a questão da independência escocesa acima das questões de gestão do Reino Unido. Desde 1994, que o SNP tem maioria absoluta no parlamento de Edimburgo. Até alcançar nesse ano, o impossível: um referendo para decidir se a Escócia se separava da União. E perdeu. Por uma pequena margem, mas perdeu.
No seu lugar surgiu Nicola Sturgeon, uma discípula fiel e herdeira natural. Nicola, uma mulher assertiva que fala sem papas na língua, sempre afirmou que devia a sua carreira a Salmond — o que só lhe ficava bem. Até que, subitamente, o mentor caiu em desgraça, acusado de assédio sexual por várias colaboradoras.
Nicola ficou numa posição difícil; se defendesse Salmond, seria acusada de ser insensível à questão do assédio, tão na ordem do dia, para mais sendo mulher; se não ficasse do seu lado, seria considerada uma ingrata e uma traidora dos valores que Salmond representou durante décadas. Escolheu contornar a questão, o que também não lhe ficou lá muito bem.
É neste contexto que se deram as eleições de quarta-feira passada. O SNP não só ganhou, como conquistou mais três lugares. Salmond, que está velho e não soube reagir bem às acusações, fundou um partido à pressa, em Fevereiro 2021, o Alba (o nome da Escócia em gaélico), não conseguindo um único deputado. Que estava acabado, só ele não tinha percebido.
É evidente que esta vitória levará Nicola Sturgeon a insistir num novo referendo. O pedido já foi feito logo a seguir ao Brexit, mas Boris Johnson não quer ouvir falar no assunto. Legalmente, é necessária a aprovação do Parlamento de Westminster para os escoceses referendarem a sua situação. O que acontecerá se o fizerem ilegalmente?
Certamente que a pressão vai aumentar. Mas Johnson tem um argumento que pode não ser juridicamente correcto, mas tem muita importância: as exportações da Escócia vão 60% para o Reino Unido e apenas 25% para a UE. Será que o rancor da EU chega para comprar mais uma disputa com os ingleses, auxiliando a Escócia, em caso de independência? Até agora, Bruxelas tem-se mantido sabiamente omissa, para não ser acusada de incitar à rebelião contra "os nossos amigos de Londres".
Enfim, mais um imbróglio para nos distrair dos que temos cá em casa, com um bom scotch na mão. Aye* !
* Aye, arcaísmo com várias proveniências linguísticas, mas que persistiu na Escócia com o significado de Sim (in Aye, Aye, Aye, Poemas Escoceses, Carlos Oliveira Santos, Dezembro 2020, edição do autor)
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