Ando há 5 dias a fugir a um assunto e, já que nem o pasodoble histórico do Trump e do Kim me distraiu, procurei refúgio nos bailaricos ensardinhados da capital. Não resultou. Sou péssimo a tentar enganar-me.
Fugia disto: falar sobre Anthony Bourdain. Decididamente não quero falar sobre Anthony Bourdain, porque no fundo quero muito. É tudo que quero há 5 dias, desabafar – e se isto faz sentido, é um sentido macabro. Vir para aqui espremer a minha tristeza tornar-se-ia, no fundo e só, uma elegia a mim próprio.
Reparo que a morte, sendo coisa certa, consegue ser incerta e enganadora. Às vezes faz reviver, nas nossas palavras e lágrimas, aqueles que há muito andavam mortos nos nossos pensamentos. “Um defunto é um assunto” soa a ditado antigo, porque rima e talvez seja verdade. O nojo e o pesar são portas escancaradas para palavras nobres; a consternação é das retóricas mais honrosas. Um cronista como eu apega-se a este dó e torna-se abutre – só dá o seu melhor quando lhe cheira a obituário
Já que a roupa preta adelgaça, talvez o luto seja elegante. “Fica bem esta franqueza”, diz aquele fado, mas fica ainda melhor o fado, a melancolia. Fica bem a tristeza. Fica bem o pranto em público, aquele que nos revela mais vítimas do que a vítima. Fica bem mal.
Anthony Bourdain não é o caso que referi há pouco, o de alguém que quero reviver porque andava morto no meu pensamento. Nos últimos 15 anos, poucos têm sido tão preponderantes nos meus ecrãs e nas minhas estantes quanto ele. Mas só o facto de eu estar a tentar justificar uma ligação intelectual e emocional, já prova o quão toldado aqui chego: um texto sobre Bourdain, neste momento, seria sempre um exercício assoberbado sobre mim próprio. Pior ainda: escrever sobre Bourdain passaria por munir-me de tudo o que percebo acerca da vida dele, mas só para fugir ao segredo que mais me entristece: não percebo a morte dele.
Talvez eu tenha qualquer coisa de sabujo, um daqueles cães de Santo Humberto que farejam sangue. Pretendi fugir ao tema Bourdain, só que era para lá que o meu nariz se inclinava. Mas esta penca metediça depois só quer cheirar a parte perfumada da história, fazer o elogio da vida e lamentar a perda dum dos grandes. Então e o desespero fétido, o súlfur da depressão? Que nariz há para isso? Só sei escrever com o pregão patético da “tanta falta que aquele homem nos faz”; que raio saberia eu escrever sobre alguém a quem a vida deixou de fazer falta?
Lamento não ter conhecido o Anthony Bourdain, até porque não tive oportunidade de lhe mostrar bifanas melhores do que aquelas com que ele cá se empanturrou. Mas hoje a minha vontade de conhecer Bourdain cairia na desonestidade – ter privado com ele garantir-me-ia uma crónica de viuvez legítima. Que estupidez de ambição.
Certo amigo meu, que na verdade é meu irmão (mas não de sangue - embora isso seja impreciso; chamemos-lhe “amigo de sangue”) perdeu recentemente, e no espaço de poucos meses, o pai e a mãe. Uma das mortes foi inesperada, a outra foi demorada, anunciada e dolorosa. Quando chegou a altura de lhe dar os pêsames, eu senti aquele ímpeto de tentar achar as palavras certas para uma dor incomensurável. Quis encontrar a password que desbloqueasse, finalmente, um sofrimento que tranca o Homem há milénios. Só que a probabilidade de querer fazê-lo por mim, e não pelo meu amigo de sangue, era escandalosa. Que estupidez de ambição.
Demos um passou-bem e falámos com os modos triviais que nos são característicos. Ele é a pessoa certa para me recordar esta coisa em que ambos acreditamos: somos meros instrumentos de consolo, não os engenheiros.
Contas feitas, disse muito pouco ao meu amigo, que é meu irmão. Sobre o Bourdain, que não conheci, acabo por escrever uma crónica em que também quase nada disse. Ainda bem. Era assim que tinha de ser.
Outro Santo António
Passei dois terços da minha vida a tentar emular o vozeirão do António Macedo. Imitava-o em relatos de wrestling americano, ou naquela célebre publicidade a uma empresa de mobiliário de escritório. É quase indigno limitar-me a tais decalques, pois a recomendação de vida de “imitarmos os bons” não é bem isto. E o António Macedo é, de entre os bons, um dos melhores – tenho tanta estima pessoal e profissional por ele que escrevi esta afirmação sem sombra de dúvidas. Mas ainda vou mais além: bater-me-ei em duelo com quem desdisser a premissa de que o Macedo é bom.
Na segunda-feira caiu, como uma bomba, a novidade de que o radialista rescindiu contrato com a RTP. Outros sportinguistas a rescindir contratos tiveram mais tempo de antena esta semana, o que considero lamentável. O choque não é o António perder assento na Antena1, é a Antena1 perder uma voz que confere qualidade inigualável a um serviço público. Deste clube eu sou sócio, por isso posso tumultuar-me com propriedade.
Não estou a escrever um texto de despedida, porque creio que só deixarei de ouvir o António Macedo no dia em que o rock ‘n’ roll finalmente me ensurdecer. É um texto de impaciência, enquanto a sua presença simpática não regressa ao éter.
A recomendação única desta semana, portanto, é uma página de apoio que rapidamente se formou em torno deste assunto. Queremos o António Macedo de volta à rádio pública.
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