Em várias ocasiões de 2017, milhares de pessoas acorreram a aeroportos norte-americanos com palavras e cartazes de acolhimento a refugiados e a migrantes de países muçulmanos.
O movimento Black Lives Matter e os ativistas de Standing Rock mobilizaram-se contra a discriminação racial e contra a exploração sem escrúpulos dos recursos naturais.
Em vários países de África as pessoas mobilizaram-se nas mais diversas ocasiões e exigiram justiça. Um pouco por todo o mundo, as pessoas indignaram-se com a perseguição aos rohingya, com a guerra dramática e persistente na Síria.
Muitos abusos de direitos humanos tiveram como protagonistas, em 2017, líderes que, nas suas políticas ou declarações, em vez de protegerem e promoverem os direitos humanos como pilar do bem comum humanitário global, foram os que mais os atacaram.
No entanto, o mundo respondeu. Relançou-se a era do ativismo, como sempre aconteceu ao longo da História quando os tempos exigem resposta de paz contra a guerra, resposta de amor contra o ódio e resposta de solidariedade contra a ganância.
A mobilização é a principal história que contamos no Relatório Anual sobre o estado dos direitos humanos no mundo, lançado há dias pela Amnistia Internacional, a 22 de fevereiro.
Uma história que diz que a humanidade não vai aceitar o caminho de ódio traçado pela retórica de divisão e de demonização daqueles líderes, que consideram algumas pessoas menos humanas que outras e que todos os que lhes fazem frente são alvos a silenciar.
Os direitos humanos são indivisíveis. Caminham juntos e por inteiro, integrados. Privar alguém dos seus direitos económicos e sociais, dos seus direitos de identidade, é privar alguém de ferramentas para exercer os seus direitos civis e políticos. Foi por isso que o mundo se mobilizou, por querer a plenitude dos direitos humanos.
Lembrando as palavras do Ministro dos Negócios Estrangeiros português na sessão de balanço do mandato de Portugal no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, frisando que os direitos humanos são inseparáveis uns dos outros, não podemos concordar mais.
Augusto Santos Silva considerou ainda que se deve entender o esforço dos países no seu contexto e no trabalho que desenvolvem por alguns direitos humanos mesmo que deixem para trás outros direitos humanos. Aqui não continuamos a concordar porque – em nome da coerência –, se os direitos humanos são indivisíveis, não se pode compreender que “um país tenha todas as crianças na escola” ainda que não permita liberdade de expressão aos órgãos de comunicação social, perseguindo os jornalistas do mesmo país. Este foi o exemplo dado.
Voltamos a concordar na forma como se trabalham diplomaticamente as questões de direitos humanos. Não há puros ou impuros – voltando às palavras do ministro Augusto Santos Silva – e por isso podemos, devemos aliás, sentar-nos à mesa com todos.
Mas aqui discordamos da “diplomacia não confrontacional” que o Governo português diz seguir. Se nos sentamos à mesa para não confrontar e falar dos problemas, falaremos de quê? Tratar-se-á de quê?
Como estar à mesma mesa com a Arábia Saudita e não confrontar sobre ativistas chicoteados em praça pública?
Como estar à mesma mesa com Angola e não confrontar sobre 17 jovens que são presos por lerem um livro ou dois ativistas por pedirem autorização para uma manifestação pacífica ou sobre a intimidação de jornalistas que fazem perguntas? Como estar à mesma mesa e não perguntar pelas condições de miséria em que vivem milhares de pessoas sem acesso a água potável e à terra por disputas entre grandes empresas que ocupam o território não deixando nada para a população no Sul de Cunene e no Huíla?
Como se pode estar à mesma mesa com a Turquia e ignorar a paranoia em que vive o regime, onde já foram presos e perseguidos milhares de pessoas, desde jornalistas a advogados, professores, polícias, militares e defensores de direitos humanos?
E também nós, Portugal, porque não nos sentámos à mesma mesa e nos confrontámos a nós próprios, para que arrumássemos a nossa casa em três anos de mandato no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas? Porque não o fizemos em matérias como a habitação, a discriminação e a exclusão social de idosos, imigrantes, mulheres, de descendentes africanos, de comunidades ciganas entre outros grupos vulneráveis? Como persistem os problemas nas prisões, como persiste o racismo infiltrado e vemos também já o discurso de ódio e a retórica da demonização? Como persiste o problema da exclusão do interior, da exclusão dos que vivem na pobreza mesmo depois de uma vida de trabalho?
A secretaria de Estado da Habitação já tem dados sobre 25.000 famílias em Portugal identificadas com carências habitacionais graves, e a habitação não é uma questão isolada como bem disse a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade. Os direitos humanos são indivisíveis. A habitação é um sinal visível de um problema maior e que persiste em Portugal: a exclusão social daqueles e daquelas que são diferentes da norma ou que, no presente, já não obedecem a critérios utilitaristas da sociedade e que, por isso, são vítimas de discriminação, nem que seja a discriminação do esquecimento.
Desejamos, sim, que Portugal se sente à mesa consigo próprio e que estas questões se debatam e confrontem, pois é da faísca do confronto que nasce a luz das soluções.
Para muitas pessoas que no nosso país sofrem abusos de direitos humanos, esse debate já tarda.
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