Quando os urbanos, que são a maioria da população europeia, pensam em consumir sem poluir, as propostas mais idílicas envolvem os alimentos naturais, sem pesticidas, produzidos num cenário pré-industrial de rios limpos e prados verdejantes. Mas há muito tempo que a produção agrícola do continente se tem mantido à custa da mecanização da mão-de-obra e o uso de pesticidas, além de recorrer a importações de origem pouco confiável.
É o habitual problema de uma procura cada vez maior e de uma oferta que já não consegue produzir ecologicamente para tantos consumidores exigentes e habituados ao “luxo” do bom e barato .e agora, ainda por cima, “limpo”.
O chamado Green Deal, a grande aposta da Comissão Europeia para um continente “neutro” climaticamente envolve uma série de medidas que tornam a produção agrícola mais cara e mais exigente para os seus agentes, além de colocar na lista negra certos produtos (como o gado bovino, o fígado dos gansos, o leite inteiro e milhares de outros) que têm garantido a sustentabilidade do sector.
O resultado é que os agricultores estão a mostrar o seu descontentamento, por vezes de forma muito activa, e ameaçam aumentar os custos - logo os preços - de muitos bens que o público se habituou a comprar barato.
Esta semana os agricultores alemães organizaram um enorme desfile de tractores frente ao Bundestag para protestar contra o aumento dos subsídios ao diesel agrícola. Mas não são os únicos; à frente da lista de descontentes estão os holandeses, e os espanhóis, franceses, belgas e irlandeses também se fazem ouvir. As razões são várias, desde a redução do gado vacum (não só os famigerados “puns” da vacas, emissores de nitrogénio, como também o consumo de forragens são considerados preocupantes…) como a despoluição dos rios e redução do consumo de água. Como resume muito bem o jornalista Ajit Nuranjan (certamente um muçulmano, diria Ventura…) no jornal “The Guardian”:
“Para alguns agricultores, a carga de pagar mais pela sua poluição é um passo excessivo depois de suportar uma crise energética e uma pandemia que os deixaram em dificuldades financeiras. Alguns consideram-se sobrecarregados com regulamentos e subvalorizados pelos citadinos que nem sabem de onde vem o que comem. Em gigantes agrícolas como a Holanda e França, os agricultures tem mostrado frustração pela pressão dos seus governos para produzir menos, depois de anos a incentivá-los a produzir mais.”
Um jovem produtor de batatas duma quinta perto de Hanover lamentou numa entrevista televisiva que agora o queriam impedir de pulverizar glipofosfato (pesticida) e não o deixavam armadilhar os lobos que rondavam a região, tudo em nome do “natural”.
Pelo seu lado, os especialistas agrícolas recordam que mais de 80% do habitat natural da Europa (o que quer isso tenha sido) está em mau estado e as colheitas ressentem-se dos solos esgotados, falta de água e eventos climáticos cada vez mais extremos.
Mas há um outro resultado destes atritutos, muito mais preocupante: é o “o populismo agrário”, ou seja, a politização do descontentamento, fazendo os agricultores mais alinhados com a direita europeia - a qual já viu a oportunidade de crescer numa classe que, historicamente, sempre foi a mais conservadora. Na Holanda surgiu o “Movimento dos Cidadãos Agricultores”, um partido populista que se saiu muito bem nas eleições locais de Março e na eleição nacional de Novembro, ajudando o novo governo nacionalista de Gert Wilders. Na Alemanha, a inevitável Alternativa para a Alemanha (AfD) também apoia os agricultores e sobe constantemente.
O discurso é sempre o mesmo, ou seja, apropriar-se do descontentamento para fomentar a contestação com teorias esdrúxulas. Uma figura famosa na Holanda, Eva Vlaardingerbroek, participou de um protesto montada num tractor e a vociferar “contra as elites globais que combatem os que trabalham duramente para por comida na mesa”. No programa do famigerado Tucker Carlson (o jornalista norte-americano, na altura na Fox News) disse que “grupos como o Fórum Economico de DAVOS estão a convencer os holandeses a comer insectos, a fechar quintas e a abrir incubadoras de insectos.” Se não acredita, pode ver aqui.
Por enquanto não existe uma sincronização coordenada entre os movimentos agrícolas e os partidos de extrema-direita, mas uma possível sintonia será verificada nas próximas eleições para o Parlamento Europeu, em Maio deste ano.
Embora a agricultura represente apenas 1,4% do PIB europeu e o número de pessoas empregue no sector tenha diminuido sistematicamente nos últimos anos, o sector tem um enorme impacto na vida dos 450 milhões de cidadãos europeus. A pequena percentagem de descontentes pode espalhar-se por outros sectores que também dependem da produção “natural”, como os transportes ou os serviços.
Vendo bem, os europeus podem ter mais ou menos Mercedes, mas têm de comer (e muito bem) todos os dias. A auto-suficiência alimentar é mais importante do que o poder industrial, e os agricultores europeus, que sempre foram protegidos pela legislação - a França será talvez o melhor exemplo de uma agricultura ricamente subsidiada - não estão dispostos a perder rendimentos em nome de uma crise climática que lhes parece inventada pelos cientistas. Sim, as cheias são maiores de que de costume, as estações parecem desencontradas, mas a agricultura deste sempre teve de viver ao sabor dos caprichos da natureza.
A direita radical e populista agarra-se a tudo o que pode para fomentar o descontentamento, sejam os emigrantes, seja o desemprego, as más decisões que os governos inevitavelmente cometem. O nacionalismo, essa metástase do patriotismo, sempre foi um argumento poderoso. Durante os séculos em que a Europa dominou o mundo, não o fez em uníssono; foi a competição desbragada entre as potências europeias que as fez colecionar colónias.
Desde 1945, pela primeira vez desde o Império Romano, parecia que a Europa se unia, os nacionalismos finalmente enterrados pela necessidade de criar um poder de dimensões à escala mundial (um dos três previstos por Orwell em “1984”) . Mas a União Europeia é uma invenção recente e pode fragmentar-se tão depressa como se uniu.
A agricultura, que parecia afastada da refrega, ao que parece não está satisfeita com os rumos do Continente - um continante que, não esqueçamos, não é auto-suficiente nem em energia nem em defesa.
A contestação dos agricultores pode ser o começo de novas rivalidades, um crescendo perigoso da insatisfação latente. Pode ser. Esperemos que não seja.
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