Nunca desapareceu em Belfast o combustível social para meter em fogo o conflito entre a parte de população protestante, intransigente na manutenção da hegemonia britânica, e a parte católica, empenhada na união das duas Irlandas na mesma república. Apesar desse potencial de risco, a maioria dos dois milhões de residentes nos 14 mil Km2 de território da Irlanda do Norte viveram os últimos 23 anos em ambiente político apaziguado.
Mas, agora, a aplicação prática do Brexit está a ameaçar a pacificação conseguida com o “Belfast Agreement”, também conhecido como Acordo de Sexta-Feira Santa, assinado em 10 de Abril de 1998, pelo governo britânico, pelo irlandês e pelas sempre muito antagónicas lideranças políticas da Irlanda do Norte.
Esse acordo de grande esperança, conseguido na Páscoa de 1998, consagra a parceria entre católicos e protestantes na governação da Irlanda do Norte e acolhe a cooperação deste território britânico com a República da Irlanda. O acordo impôs aos velhos rivais o desarmamento e que as divergências sejam resolvidas de modo político, com renúncia total às metralhadoras, às bombas e aos “cocktail Molotov” que, nas três anteriores décadas de guerrilha permanente, tinham causado a morte de 3.600 pessoas, para além de dezenas de milhares de feridos. O acordo de Sexta-feira Santa também permite aos residentes na Irlanda do Norte que possam ter dupla nacionalidade, a britânica e a irlandesa.
A assinatura do acordo fez a Irlanda do Norte passar de tanto conflito a uma fase de trégua. A capital, Belfast, saiu do quarteto de lugares com inicial B (Beirute, Bagdad, Bósnia) onde, naquela década de 90, a vida tinha baixo valor.
A ameaça deixou, naquela Páscoa, de ser permanente em Belfast, mas quem visitasse a cidade sentia imediatamente como aquela paz era frágil, porque apesar de imposta no papel, não tinha entrado no coração e na cabeça de alguns dos mais obstinados na causa de um lado e do outro.
Estive em Belfast cinco anos depois do Acordo. Impressionou constatar como um muro não apenas psicológico continuava a dividir aquelas duas comunidades que seguiam tão hostis entre elas. Quem percorresse a Shankill Road encontrava constantes elos com o Reino Unido: a bandeira Union Jack por todo lado, tal como murais a celebrar “os mártires assassinados pelo IRA”. A Shankill é bastião dos unionistas, portanto, pró-britânicos. Encostado à barra de um concorrido pub, quando perceberam pelo microfone do gravador que aquele estrangeiro estava ali como repórter, logo vários dos presentes, quiseram dizer, com voz grossa e muita cerveja, que o “sangue deles tinha a cor azul do Reino Unido”.
Uns quarteirões mais à frente, sempre em paisagem desolada, entramos em Lanark Way, onde uma velha cancela de ferro barra a passagem em automóvel para Ballymurphy. Deste outro lado, a Falls Road leva à Springfield, coluna vertebral do bairro republicano, pró-irlandês. Os murais marcam imediatamente a diferença, com grafitis abundantes a glorificar a luta armada do IRA e dos combatentes republicanos.
A incomunicação entre as comunidades rivais, apesar de em bairros separados por escassas centenas de metros, era então evidente. Assim continua.
Apesar do desmantelamento prometido em 1998, os muros – paradoxalmente designados Peace Walls – continuam a separar bairros (e às vezes até simplesmente quarteirões) protestantes daqueles onde todos são católicos. Este arquivo de imagens mostra essa desolação que continua. Sente-se que a vida é passada numa prisão a céu aberto.
Foram abundantes os avisos de que o Brexit seria para a Irlanda do Norte uma fábrica de bombas preparadas para explodir.
A fanfarronice de Boris Johnson a celebrar o Brexit fê-lo não dar atenção a esses alertas.
Era preciso tê-los levado a sério. Os velhos fantasmas reapareceram no começo deste ano. A aplicação do Brexit impôs a instalação de uma fronteira comercial no mar da Irlanda. Assim sendo, a Irlanda do Norte continuou sem fronteira com a República da Irlanda, para sul, mas com uma fronteira a separá-la da enorme ilha britânica, a leste.
Entre os pró-britânicos na Irlanda do Norte instalou-se o sentimento de traição por parte do governo de Londres. A fúria cresceu à medida que foi sentida, sobretudo nas prateleiras dos supermercados, a falta de consumíveis antes abundantes.
A revolta explodiu no começo deste abril, precisamente nas noites dos dias da Páscoa. Foi armada por gente muito jovem, nascida depois do tempo dos terríveis troubles que o acordo de 1998 tinha interrompido. Em sucessivas noites, rapazes, muitos com 13 ou 14 anos, todos pró-britânicos, atearam o fogo, em protesto contra o que sentem como traição pelo governo britânico, ao deixá-los do outro lado da fronteira. Incendiaram carros, autocarros, até jipes e carros anti-distúrbios da polícia. O boletim das forças de segurança regista que 72 polícias sofreram ferimentos e queimaduras que os levaram ao hospital.
Os rapazes usaram cocktails molotov como arma. Mas há quem garanta que foram instigados por veteranos paramilitares unionistas que exploraram a frustração dos miúdos por estarem submetidos a sucessivos confinamentos por causa da pandemia, e acrescentaram-lhe revolta por estarem a ser atraiçoados por aqueles a quem têm sido leais.
É um facto que os veteranos do tempo da guerra civil conhecida como não apareceram nas trincheiras destes distúrbios. Mas ficou confirmado que o velho conflito entre as duas históricas comunidades antagónicas na Irlanda do Norte, longe de estar sufocado, está com um fogo que se aviva.
Vale ter em conta a história. Toda a ilha irlandesa foi terra britânica por vários séculos. Na sequência da Primeira Guerra Mundial, a luta dos republicanos irlandeses impôs-se: a independência foi declarada em 1916 e foi reconhecida por Londres em 1922. Os republicanos irlandeses são maioritariamente católicos. O tratado anglo-irlandês que selou a independência acautelou que uma porção no topo norte da ilha irlandesa permaneceria no Reino Unido, seria um território de preferência para a comunidade protestante, alinhada com o Reino Unido. Acontece que a demografia tem feito crescer a percentagem de católicos também na Irlanda do Norte.
A unificação das Irlandas é um tema que o Brexit recolocou na discussão e que parece com desfecho incontornável. Não será um desenvolvimento para o curto prazo, mas imaginável para daqui a uns 20 anos.
Há um post-scriptum a ter em conta: o Brexit também está a reativar uma outra tensão que está com desenvolvimento em quadro político pacífico: a Escócia volta a agitar-se pela independência e para recuperar a integração na União Europeia. Há eleições gerais já na semana que vem, em 6 de maio. O previsível triunfo do Partido Nacionalista Escocês (SNP) vai levar o governo da Escócia à exigência de novo referendo e, desta vez, as sondagens sugerem que o Reino deixa de ser Unido
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