A Heineken lançou em fevereiro a campanha “Cheers to all” em que desafia os estereótipos de género. Esta campanha apresenta um conjunto de situações em que um homem pede um cocktail e uma mulher uma Heineken, mas os pedidos são trocados porque a cerveja continua a ser associada ao universo masculino e os cocktails ao feminino.
O objetivo é alertar para a existência de ideias e pressupostos sociais que não correspondem à verdade, para refletir sobre os mesmos e eliminar rótulos desnecessários. Como é descrito no site da campanha “às vezes as pessoas assumem quem pediu o quê com base nos rótulos associados às bebidas, mas acreditamos que as bebidas não têm sexo, começando com a cerveja Heineken”.
Esta é mais uma oportunidade para refletirmos sobre como estas ideias são datadas e desnecessárias. No entanto, são estereótipos que continuam enraizados em nós e a influenciar a forma como interagimos socialmente.
Marcas e estereótipos de género
Esta não é a primeira vez que uma marca se arrisca a desafiar os estereótipos de género. Em 2019 a Gillette gerou controvérsia com a campanha “We Believe: The Best Men Can Be”, a qual resultou num backlash (nas redes sociais nomeadamente) e num apelo ao boicote dos produtos que possivelmente afetou as vendas. Mas não me parece que seja este o caso na campanha “Cheers to all”. A Heineken evitou a via da crítica dura e optou por um tom bem disposto, alegre e humorístico para representar um conjunto de situações que de alguma forma reconhecemos como sendo reais. É essa a mensagem de Blanca Juti, diretora de relações empresariais da Heineken: “este anúncio é uma imagem real de realidade; não precisamos de acrescentar nada. Quando a vemos, sorrimos porque é algo pelo qual também já passámos. É por isso que nos identificamos."
Para Juti, “Cheers to all” também é sobre “quebrar estereótipos, nos dois sentidos. Não há razão para que a cerveja deva ser para homens e os cocktails para mulheres. As bebidas não têm género. Queremos mostrar uma imagem da sociedade que é real e trata as pessoas igualmente.”
Desconstruir para avançar
Apesar do que se tem avançado em direitos humanos e igualdade de género, em 2020 continua a ser necessário refletir masculinidades, feminilidades e estereótipos de género. Por exemplo, sabemos que o número de homens em licença parental em Portugal triplicou e que a nível de políticas públicas a nova lei da parentalidade reforçou os direitos dos pais, aumentando de 15 para 20 os dias úteis de licença parental.
No entanto, continuamos a ter muito para fazer, e para tal é necessário desconstruir estereótipos de género para que estas categorizações não limitem o desenvolvimento das crianças. Segundo o Livro Branco - Homens e Igualdade de Género em Portugal “a probabilidade de um homem se suicidar é 3 vezes superior à de uma mulher”. De uma forma geral, “os homens têm piores hábitos alimentares”, “são mais propensos a adotar comportamentos de risco (bebem mais, fumam mais e são maiores consumidores de substâncias psicoativas ilegais), recorrem menos aos serviços de saúde numa lógica preventiva (frequentam menos as consultas médicas, incluindo as consultas de especialidade, realizam exames de diagnóstico com menor frequência, etc.).”
Estas são algumas das razões pelas quais é urgente continuar a trabalhar para promover masculinidades cuidadoras, afectivas e transformadoras. Nomeadamente nas escolas e em casa.
Homens e rapazes vítimas de violência sexual
Como tenho dito noutros textos, sabemos que 1 em cada 6 homens é vítima de alguma forma de violência sexual antes dos 18 anos. No entanto, esta é uma realidade pouco conhecida porque os estereótipos masculinos reforçam a ideia errada de que não é sequer possível para um homem ou rapaz ser abusado sexualmente.
As ideias tradicionais da masculinidade, como por exemplo de que o homem não deve procurar apoio ou de que deve resolver os seus problemas sozinho, também são obstáculos à procura de ajuda. Muitos homens quando procuram o auxílio da Quebrar o Silêncio têm imensa dificuldade em falar dos sentimentos, emoções ou mesmo chorar, porque sempre lhes foi reforçado, de forma errada, que isso não é coisa de homem.
Pode não parecer, mas todas estas questões estão relacionadas entre si: desde o que é referido na campanha da Heineken, às questões da parentalidade, passando pela violência exercida por homens contra outros homens ou contra mulheres e raparigas, até ao reconhecimento dos homens enquanto vítimas de violência doméstica e sexual.
É preciso mudar a forma como educamos os rapazes e as raparigas para que não haja limitações e para que se crie um contexto onde homens e mulheres gozem das mesmas oportunidades e direitos.
Campanhas como a “Cheers to all” da Heineken são oportunidades para relembrar a importância deste debate. Os homens deveriam poder fugir à manbox ou mesmo rejeitá-la sem sentir que são menos homem por isso. Os homens deveriam poder ignorar estas restrições sem serem alvo de discriminação e violência. Um homem deveria poder beber cocktails e uma mulher deveria poder beber cerveja, sem que tal seja motivo de constrangimento; afinal de contas não há nada de errada nisso.
Se foi vítima de alguma forma de violência sexual por favor contacte a associação Quebrar o Silêncio através do número 910 846 589 ou do email apoio@quebrarosilencio.pt. A Quebrar o Silêncio presta apoio especializado para homens vítimas de violência sexual. Os serviços de apoio são confidenciais e gratuitos.
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