Eu, como todos os portugueses, sou especialista em tudo, desde treinador de bancada a epidemiologista de sofá, passando por economista de chaise longue até juiz de retrete. Por isso, tenho bitaites sobre este novo aumento de casos e sobre o que está a ser feito sobre isso, mas vou poupar-vos de ouvirem as minhas medidas que passariam por orgias de pessoas já vacinadas como eventos de teste, mas sem erros informáticos que deitam tudo a perder (gosto que dizem erros informáticos como se os computadores tivessem vontade própria e não fosse erro humano). No entanto, como cidadão, sinto que a minha maior queixa tem que ver com a comunicação dos nossos dirigentes que é tão coerente como a de alguém que está a ter um AVC e é tão transparente como os olhos de um velho com cataratas. 

Numa altura em que a vacinação avança em velocidade de cruzeiro, tendo já Portugal vacinado com as duas doses mais de 25% da população e estando quase a chegar aos 50% no que diz respeito à primeira dose, os casos continuam a aumentar, aumentado a incidência e o R(t). Porquê? Ninguém parece muito interessado em explicar ou, pelo menos, em dizer "Não sabemos! Andamos nisto há um ano e não fazemos puto de ideia porque investimos tudo em máscaras e álcool gel e não sobrou para mais nada! O que sabemos é que os surtos não vêm dos transportes públicos! Isso é que não".

É curioso que os teatros apenas tenham 50% de lotação e os transportes públicos tenham 100%, mas de certeza que os transportes públicos e a diminuição do teletrabalho nada têm que ver com o aumento dos casos. Aliás, os transportes públicos nunca foram motivo de surtos, claro, caso contrário teria de se assumir a culpa de não os ter melhorado ou resolvido o problema quando já passou mais de um ano. A culpa deve ser da malta nova, claro. Da malta nova que se junta na rua para beber uns copos e tentar recuperar a vida social que esteve em pausa. Esses gandins que se lhes dissessem para sair à rua ficavam em casa a jogar Playstation, agora dizem para ficar em casa e vão para a rua, encher as esplanadas. 

Nunca critiquei muito os dirigentes e as autoridades. É uma pandemia. Ninguém estava preparado (embora devessem) e em todo o mundo se viram os mesmos erros e as mesmas incertezas face ao desconhecido. Os avanços e recuos fazem também parte da ciência. Confiei e continuo a confiar nos especialistas e a ter a certeza de que sabem mais do que eu, mas acho que está na altura de se começar a exigir um bocadinho mais de competência a quem elegemos para mandar nisto. Os telejornais dão tempo de antena a políticos que querem fazer currículo à la Marcelo em vez de dar mais tempo de antena a especialistas que sabem do que falam sem papaguear o que ouviram aqui e ali e sempre com alguma agenda por trás. Eu gostava só de obter resposta às seguintes perguntas, se não fosse pedir muito e se os impostos que eu pago chegarem para isso:

  1. Onde estão concentrados os maiores surtos? Locais onde acontecem mesmo.
  2. Porque é que o aumento de casos é maior (mais do dobro) do que no mesmo período do ano passado, sendo que havia menos gente imune, seja por infecção, seja por vacina e as restrições eram as mesmas ou até mais leves?
  3. Quais as faixas etárias mais afectadas neste momento?
  4. Percentagem de vacinados nestes novos positivos? E a gravidade de sintomas?
  5. As mortes são em que faixas etárias? Nos mais velhos que já estão vacinados? Se sim, caem dentro do expectável dado à eficácia da vacina não ser nunca de 100%?
  6. Os internados aumentam porque há gravidade de casos ou porque como já não há tanta tensão no SNS admitem-se casos mais ligeiros por precaução?
  7. O número de testes feito está a ser maior devido aos autotestes? Se sim, isso está a influenciar o aumento de casos ou é a percentagem de positivos a aumentar?

A ver se o Marques Mendes pega nisto e responde que ele sabe tudo e tem sempre gráficos e tabelas e não sei quê. Sei que algumas respostas devem estar acessíveis se eu pesquisar bem na Internet, mas sinto que não devia ser preciso, até porque nem toda a gente sabe mexer no Google como eu que faço pesquisas com aspas e “+” e tudo.

Esta falta de comunicação tem efeitos secundários chatos. Por exemplo, é normal que algumas pessoas olhem para os dados mais recentes e pensem: afinal as vacinas não funcionam, temos já tanta gente vacinada e os casos aumentam? É um pensamento legítimo, apesar de errado, mas as pessoas estão fartas e muitas são burras, mas é obrigação do Governo contar com os burros e informá-los melhor. O problema é que os burros dão jeito ao Governo, porque além de burros são bodes expiatórios e é-lhes atribuída a culpa, sacudindo, assim, a água do seu capote. Depois, é normal que as pessoas pensem que, então, mais vale ter o proveito, já que têm a fama. Não estamos todos no mesmo barco, nunca estivemos, mas estamos todos ao sabor da corrente e elegemos todos os mesmos comandantes e capitães que não sabem mexer no leme nem içar velas.

Deixam-se fazer festejos de futebol que violam todas as regras vigentes, inclusivamente as do bom senso, sem se antecipar nada, resignados a que “É futebol, vamos fazer o quê?”. Quem paga são os pequenos negócios que continuam fechados ou limitados, mesmo que não tenham sido os festejos a causar novos casos, irá sempre pairar no ar essa nuvem. O papel de um Governo é saber que as pessoas não cumprem e acautelar isso. A responsabilidade individual é muito linda, mas não vivemos em Nárnia. Umas semanas antes dos festejos do Sporting, o meu irmão e mais três amigos foram multados por estar a jogar às cartas num banco de jardim sem máscara. Duzentos euros cada um. Passado umas semanas já foi à vontade do freguês e do Marquês.

Estes dois pesos e duas medidas só ajudam a virar-nos uns contra os outros e a que haja menos respeito pelo próximo e que estejamos todos mais fartos. Ao menos, tinham multado todos os que não cumpriram a lei nos festejos do campeonato e da Champions e teríamos o défice resolvido. Para os de direita, o Avante foi um erro e a festa da Iniciativa Liberal foi necessária para dar o exemplo. Para os de esquerda, o Avante foi inócuo e a festa da Iniciativa Liberal uma afronta. Ninguém quer saber muito de saúde pública, na verdade, querem é gasolina para os seus incêndios de redes sociais.

É difícil escrever sobre isto sem ser moralista. Apesar de tentar respeitar sempre, também já estive em sítios sem máscara onde devia estar. Já estive com mais gente dentro de um espaço fechado do que era aconselhável e nunca fui a uma festa ilegal porque, além de hipócrita, sou hipocondríaco. Foi só um desabafo, mas para quem estava à espera de piadas, por isso, cá vai uma: vai ficar tudo bem. LOL

Para ver: Inside, de Bo Burnham

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