Ao chegar ao Outono, em que os prazeres se afastam do mar e do sol e se achegam a uma biblioteca, onde me imagino a folhear um velho livro, junto a uma janela que dá para um bosque em vários tons de castanho, e em que há certamente, ali a um canto, uma lareira a crepitar — apetece-me olhar para a origem da palavra «livro».

Antes de entrarmos na máquina do tempo, em busca dos caminhos dessa palavra, convém olhar para ela com atenção. Há mais palavras ali escondidas...

Há muitas palavras que escondem outras palavras. Em certos casos, são duas (ou mais) palavras completamente diferentes, que por acaso têm o mesmo aspecto. «Banco» (de sentar) e «banco» (de guardar dinheiro) são um exemplo famoso. Mas não é da homonímia que falo. Falo das subtis diferenças de significado de uma só palavra. Por exemplo, se eu digo «tenho muitos livros nas estantes», estou a falar dos objectos — até podem ser muitos exemplares do mesmo livro, como acontece numa certa loja de móveis sueca (ou holandesa, já não sei), onde, em certas estantes, o mesmo romance se repete até ao infinito. Já se eu disser «acabei de escrever o livro», provavelmente, esse tal livro ainda só existe num ficheiro escondido no computador — não é um objecto físico. Em certos contextos, «livro» até pode querer dizer «subdivisão de livro»! E podia continuar — a mesma palavra pode ter em si várias palavras relacionadas, que usamos de forma subtil, quase sem reparar nas diferenças.

Não se impaciente o leitor que está neste texto à procura da origem prometida no título. Revelo já: a palavra «livro» vem... (rufar de tambores) ... do latim! Pouco surpreendente? Admito que sim. Mas não tenho culpa. A palavra era «liber» e veio a dar origem aos vários livros das línguas latinas: «livro» (português), «libro» (castelhano), «llibre» (catalão), «livre» (francês), «libro» (italiano), entre outros. Já os romenos chamam ao livro «carte» — acontece...

E pronto, podíamos acabar por aqui. Mas também podemos escavar um pouco mais... Antes do significado semelhante ao nosso, a palavra quis dizer algo como «a parte interior da casca da árvore», remetendo para os materiais em que se escrevia. Se empurrarmos um pouco mais a nossa geringonça do tempo, chegamos a uma língua falada há 5000 anos: ao proto-indo-europeu, que deu origem a quase todas as línguas da Europa (e mais umas quantas noutras paragens).

Ora, a palavra latina «liber» teve origem numa raiz dessa língua antiga: «*lewbʰ», que significaria algo como «descascar».

Se pusermos agora o filme a andar para a frente, podemos imaginar o tal «descascar» a transformar-se na própria casca da árvore e, depois, com mais uns quantos saltos, no livro latino. Enquanto a palavra mudava e se dividia pelas várias línguas, o próprio objecto também foi mudando, por outros caminhos, transformando-se na coleção de folhas unidas por um dos lados que conhecemos hoje — e que esconde prazeres que duram horas.

A antiga palavra indo-europeia (tem mais de 5000 anos!) não terá sido o início da história. Houve outras palavras ainda mais antigas que lhe deram origem, mas já não são recuperáveis. No entanto, sabemos que no proto-indo-europeu, tal como em português, também havia palavras que tinham a mesma forma, mas significados diferentes. A raiz «*lewbʰ-», além de «descascar», queria dizer «amar». Cada língua com as suas manias... O certo é que a palavra «*lewbʰ-» deu origem a outras palavras actuais, como o «love» inglês.

Ou seja: se andarmos a cirandar pela história das palavras, encontramos uma ligação antiga entre o amor e os livros. É uma ligação fortuita, que não quer dizer nada — mas lá que me deixa com um sorriso nos lábios lá isso deixa...


Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Pontuação em Português.