Quem os tem, sabe bem do que falo: filhos pequenos em casa num tempo como este o que mais fazem é sugar a paciência aos pais. Enfim, a culpa não é deles e ninguém nos ensinou a viver em tempos assim. Para distrair um pouco, pus-me a escavar a origem da palavra «filho». Há uma surpresa por lá enterrada...
Grande parte das línguas da Europa descende de uma língua antiga com o lindo nome de proto-indo-europeu. O nome que os seus falantes lhe davam seria outro, bem mais simples — espero.
Sem certezas, podemos apontar para o território da actual Ucrânia como o mais provável cenário das conversas nessa língua, que veio a dar origem a línguas tão díspares como o português, o inglês, o irlandês, o russo, o grego, o persa, o sânscrito, entre tantas outras.
Os linguistas reconstruíram a forma da palavra para «filho» nessa língua: «*suHnús» — o asterisco indica que estamos perante uma palavra reconstruída, sem registo escrito.
Seria esta a palavra que os filhos ouviriam da boca dos pais, ali pelas costas do Mar Negro, há uns bons 5000 anos: «Ó suHnús, anda para casa, que já é nókʷts!».
De há 5000 anos para cá, muita coisa aconteceu. O proto-indo-europeu dividiu-se em várias línguas, que por sua vez se dividiram noutras línguas, sempre com mudanças — algumas graduais, outras bem mais radicais.
No caso da palavra para «filho», há línguas que receberam, depois de muitas pequenas mudanças, a palavra proto-indo-europeia. É o caso do «son» inglês e do «сын» («syn») russo, só para dar dois exemplos.
Mas, no caso das línguas latinas, houve um pequeno acidente de percurso. A certa altura, os falantes deixaram de lado a velha palavra e começaram a usar outra...
Façamos a viagem em direcção ao passado. Do nosso «filho», chegamos (com um salto apressado) ao «filius» latino. A palavra latina descende da palavra «*feiljos» do proto-itálico, uma língua anterior ao latim. Por fim, essa palavra veio do tal proto-indo-europeu, onde tinha a forma «*dʰeh₁ylios».
O curioso é que a palavra, nessa língua antiga, tinha outro sentido. Significava «sugador»! Afinal, um filho era o que mamava.
Em que momento da história a palavra para «sugador» passou a ter o significado de «filho»? Não sabemos, mas terá sido há mais de 3000 anos... Lá que é um grande salto, lá isso é. «Tenho lá em casa dois sugadores...» Diga-se que a mesma palavra proto-indo-europeia deu origem a outras palavras, como «feminino» e (tapem os ouvidos aos pequenos) «felação»...
Muitas palavras deram estes saltos — aliás, sem sair do mesmo tema, o gaélico escocês «mac» significa filho — basta pensar num nome de restaurante muito conhecido fundado por um filho de Donald... O tal «mac» tem origem na palavra do proto-indo-europeu para «criar» ou «tornar maior». Um pouco menos embaraçoso que os nossos «little suckers».
As palavras estão sempre em mudança. A nossa própria palavra «filho» lá continua a mudar. No Brasil, em muitos registos, é comum ouvirmos a palavra sem o «lh», aproximando-se da forma noutras línguas latinas, como o romeno «fiu». Em Portugal, o som /u/ final está muito desbastado: já não arredondamos os lábios e, por vezes, já nem o dizemos. Nada a temer: o francês é a mais desbastada das línguas latinas e poucos se queixam. As línguas rapidamente acrescentam outros materiais, num lento processo sonoro de erosão e sedimentação, dificilmente observável nas poucas décadas em que ouvimos a nossa própria língua, mas que se nota quando olhamos para as línguas ao longo de centenas ou milhares de anos.
Enfim, espero que esta pequena história de uma palavra ajude a passar os dias com os filhos em volta.
Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.
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