A história de Kristin Brey foi contada pelo The New York Times, no dia 23 de agosto. O nome por cá não é conhecido, por isso comecemos pelas apresentações. Kristin Brey é apresentadora de rádio e colunista em jornais e foi nessa condição que se apresentou como jornalista credenciada à convenção do Partido Republicano, em Milwaukee, em meados de julho. Não teve uma boa experiência, como a maior parte dos jornalistas que cobrem estes eventos não têm – espaço sobrelotado, dificuldade de aceder a potenciais entrevistados, muita confusão.
Um mês depois, a mesma Kristin Brey deslocou-se à Convenção Democrata, em Chicago, mas desta vez não se apresentou como jornalista, mas sim como criadora de conteúdos. Foi toda uma nova experiência, desde passeios de barco no Lago Michigan a festas em rooftops, comida e bebida à discrição e proposta de várias entrevistas a membros do Partido Democrata. Não foi o caso dela, mas outros convidados premium, também criadores de conteúdo/influencers tiveram inclusive acesso a entrevistas com Kamala Harris, coisa que os jornalistas não puderam fazer.
O acesso diferenciado de jornalistas e influencers a eventos públicos não é uma novidade, mas a Convenção Democrata elevou a diferenciação a um outro nível. Por um lado, porque se trata de um evento de importância maior, uma vez que oficializa a nomeação dos candidatos a governar o (ainda) mais poderoso país do mundo. Por outro, porque, deliberadamente, o Partido Democrata quis fazer uma ação de charme (de muito charme) de forma a inundar as redes sociais de publicações favoráveis à sua candidatura publicadas por pessoas que têm milhões de seguidores, estando muitos deles entre as camadas mais jovens da população.
Foi com essa premissa que foram convidados cerca de 200 influencers, muitos deles com viagens e hotéis pagos, além dos outros benefícios da estadia. E lá estiveram também cerca de 15 mil jornalistas, com despesas pagas pelos próprios ou pelos meios de comunicação para que trabalham.
Um mês antes, a campanha de Donald Trump também tinha convidado com estatuto premium vários influencers – mas em menor número, cerca de 70. O fenómeno não é americano, é global, e Portugal não é exceção. A ideia é simples: conquistar a atenção de pessoas, nomeadamente os mais jovens, cada vez mais desligados das “notícias” mas muito atentos ao que é publicado nas redes sociais, nomeadamente Instagram, TikTok e YouTube.
Numa perspetiva táctica, é uma forma de falar com pessoas com quem os partidos (já) não conseguem falar através da televisão, da rádio e dos jornais, nos espaços informativos, porque simplesmente se desligaram desses meios.
A questão é que a eleição de um presidente da República ou de um chefe de Governo, nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo, não é uma decisão de consumo – ou de influência – como qualquer outra. Esgotar um vestido, uns ténis ou encher um restaurante, porque se tem milhões de seguidores não afeta a forma como vivemos em sociedade – apenas torna as marcas mais bem-sucedidas no seu objetivo de venda, como a publicidade ou outras ações de marketing sempre fizeram.
É verdade que os influenciadores não estão limitados ao universo do chamado 'lifestyle' e que há gente com qualidades óbvias em variadíssimas áreas, mas quando se trata de decidir a eleição de um governante talvez faça sentido pensar nas regras de produção de conteúdo – mesmo que a maioria dos 'Tiktok' sejam bem mais “fun” e fáceis de consumir do que artigos que exigem tempo e um outro tipo de atenção que não se esgota em rápidos segundos.
Antes que chovam os chavões da praxe – “desde quando é que os jornalistas são independentes?” ou “não estavam era habituados a ter outros a dizer as verdades”, para não falar no tão apreciado ‘jornalixo’, só para citar alguns – vale a pena olharmos para alguns dados que nos ajudam a perceber onde estamos.
O jornalismo tem regras - e consequências
O jornalismo, como qualquer outra profissão, tem regras e são essas regras que o tornam uma atividade profissional e não um hobbie ou algo que se faz sem consequências. A ética no exercício das funções é um dos pilares e o processo jornalístico – de verificação dos factos, de procurar o contraditório e de exercer com espírito crítico o apuramento da informação – fazem com que ser jornalista seja diferente de publicar conteúdos.
Não é diferente do que se passa com médicos e advogados, ou com mecânicos e cozinheiros, para termos diversidade. Há processos médicos ou legais, ‘jeitinhos’ no automóvel ou pratos que fazemos para os amigos que podem decorrer da nossa aprendizagem, intuição, senso comum ou simples talento para determinadas tarefas. Isso não faz de nós profissionais na área. Por várias razões, desde a capacidade para abarcar tarefas mais complexas que exigem outro tipo de formação, mas, logo na base, pela responsabilidade que a sociedade nos imputa pelo exercício dessa profissão.
Há maus jornalistas que não seguem a ética profissional a que estão vinculados e as regras da profissão? Há. Como há maus médicos, advogados, mecânicos ou cozinheiros. Mas a discussão não é sobre o exercício particular de cada um, mas sim sobre as premissas do exercício da profissão e aquilo que qualquer cidadão tem direito a esperar e a exigir de quem a exerce.
Podemos argumentar que é igual para um influencer: aquilo que tem para oferecer é a atenção dos seus seguidores e aquilo que tem a perder é essa mesma atenção, caso o julguem por má conduta ou por simplesmente não gostarem do que disse ou escreveu.
A pergunta que subsiste é se todos nós, enquanto sociedade, estamos dispostos a que a medida pela qual regemos um dos ativos mais importantes de uma comunidade, que é a confiança, seja a validação por número de seguidores em redes sociais, suportadas em tecnologias cujo funcionamento não é acessível nem a Estados, nem a cidadãos, já que pertencem a empresas privadas que perseguem os seus próprios interesses.
Esta é uma pergunta que não fere a atividade de quem ‘influencia’, mas que se dirige sobretudo a quem é influenciado.
Mas não basta isso para termos uma melhor informação, que nos ajude a entender o mundo em que vivemos e a tomar decisões. Também os jornalistas precisam repensar a forma como fazem jornalismo, ou até mais profundamente, sobre como manter o jornalismo como uma atividade efetivamente necessária para a sociedade e não apenas para alguns.
As pessoas que desistem das notícias
O Digital News Report é um relatório anual sobre o estado dos media em 56 países e territórios do mundo elaborado pelo Reuters Institute for the Study of Journalism , uma das entidades mais reputadas e credenciadas para o efeito.
Há vários anos que este mesmo relatório nos mostra que há um número crescente de pessoas que decidiram deixar de ler, ver ou ouvir notícias. Em 2017, 29% das pessoas que responderam ao inquérito assumiam evitar notícias; em 2023, o valor subiu para 39%.
“É mesmo deprimente. Preocupa-me que o jornalismo tenha sido demasiado lento a reorientar-se e a repensar o seu papel e propósito. As pessoas não sentem a falta do jornalismo, mas o jornalismo sente a falta das pessoas”. Foi este o comentário de Lea Korsgaard, editora-chefe do jornal dinamarquês Zetland quando questionada sobre o aumento do número de pessoas que evitam as notícias.
O diretor do Reuters Institute, Rasmus Nielsen, traz outra visão do tema, numa entrevista ao jornal espanhol El Diario. “As publicações que estão a ter sucesso comercial são muitas vezes representativas de tipos de jornalismo que os jornalistas gostam e respeitam. Mas temos também de reconhecer que se trata de publicações de topo de gama, orientadas para a elite, que servem uma parcela do público de meia-idade, rica, altamente qualificada e politicamente empenhada, muitas vezes urbana. E isso é ótimo para os editores, fico feliz que possam ganhar a vida servindo pessoas como eu, mas também temos que lembrar que grande parte do público não é como eu. Nesse sentido, é um retrocesso em relação às origens históricas dos jornais... “.
Ou seja, há também uma desigualdade no mundo no que respeita à informação e com possíveis impactos na forma como as democracias – e as sociedades – evoluem. Nos extremos está um segmento mais rico, mais instruído, mais informado, que escolhe como se informa, e, do outro, uma maioria mais pobre, menos instruída, menos informada, que se informa com o que ‘apanha’ nas redes sociais.
“As pessoas que consomem notícias ativamente constituem uma parte relativamente pequena do público, que tende a ser rico, altamente instruído, mais velho e politicamente engajado. E com a mudança para modelos pagos, os publishers são cada vez mais incentivados a servir esse grupo demográfico. Estamos a assistir a um desenvolvimento gradual em direção a uma maior desigualdade de informação”, sublinha Rasmus Nielsen.
Quando olhamos para um outro resultado deste mesmo estudo, percebe-se que as duas maiores necessidades dos cidadãos que os media não estão a conseguir dar resposta adequada são, em primeiro lugar, ‘dar perspetiva’ e, em segundo lugar, dar esperança – ou inspiração, se assim lhe quisermos chamar.
O que significa isto? Sobre perspetiva, talvez ajude se o escrevermos no plural sem arruinar o sentido: dar perspetivas. No fundo, trata-se de procurar respostas para temas que marcam a atualidade e/ou interessam e preocupam as pessoas sem repetir ad nauseum uma visão única das coisas ou formatos áridos que pouco ou nada acrescentam à exceção da notificação que um facto aconteceu. O registo do que aconteceu é um ponto de partida, mas não é, na maior parte dos casos, o ponto de chegada que melhor satisfaz as necessidades de informação. Também é isso que significa “repensar o papel e propósito” do jornalismo, como referia Lea Korsgaard.
A segunda necessidade a que os media dão uma resposta mais insatisfatória, segundo o Digital News Report, é na capacidade de comunicar notícias que permitam às pessoas sentirem-se melhor com o mundo, com mais esperança, com mais possibilidades. No fundo, contrariar a ideia de que “nos jornais” só há más notícias ou só é notícia aquilo que não é bom e, nos casos em que efetivamente se trata de uma má notícia ou de um problema, conseguir também apontar caminhos e soluções.
Se fizermos o comparativo com aquilo que os criadores de conteúdo / influencers publicam – não falando da componente comercial, ou seja, de quando estão assumidamente a promover um produto ou serviço – estas duas razões explicam muitos dos movimentos de milhões de seguidores. Seguem-se pessoas que dão “uma perspetiva diferente”, e aqui cabem muitas nuances do ótimo ao péssimo, e seguem-se pessoas que inspiram a ver o mundo como um sítio melhor, seja, na versão mais básica, porque estão em locais bonitos, ou por que trazem uma visão qualificada sobre um determinado tema, muitas vezes mais qualificada que a informação que está disponível nas notícias.
Podem os media competir com estas “perspetivas” e como este olhar sobre o mundo? Devem os media competir?
É uma discussão que vale a pena ter, mas o jornalismo tem na sua natureza – e deve ter – essa elasticidade. Quando em 50 notícias sobre um acontecimento, 99% dizem exatamente a mesma coisa – às vezes até textualmente a mesma coisa – qualquer coisa está a falhar no olhar sobre o mundo. Os factos são os factos – um roubo de 10 milhões de euros são 10 milhões e não 8 ou 12. Mas o contexto em que um roubo de 10 milhões de euros aconteceu é passível de ter várias abordagens e a história pode ser contada de diversos ângulos e formatos. E isso também é dar perspetiva – com a mais valia de, no processo jornalístico, existirem as tais regras que permitem a quem lê, vê ou ouve confiar e não apenas dizer “não sei se é verdade ou mentira, mas achei uma boa história”.
Nem sempre o jornalismo foi uma atividade com profissionais dedicados a tempo inteiro e com uma relação laboral com uma determinada imprensa. Médicos, advogados, escritores, apenas para citar alguns, contribuíram em vários contexto para uma informação mais clara e melhor - seguindo as regras que traçam a fronteira entre informação e propaganda, entre informação e manipulação. Hoje existe no espaço público uma pluralidade de intervenientes que acrescentam valor quer pela experiência em determinadas áreas, quer pelo seu pensamento crítico que ajuda a "descascar" as notícias ou os factos que são alvo das notícias. Também eles devem estar neste debate de repensar o papel e propósito do jornalismo numa discussão que deve ser aberta e não monolítica. Essa é parte da mudança que as redes sociais tornaram palpável no jornalismo – a exigência para que seja mais relacional, que integre novas vozes e que não seja apenas um repositório de factos. Fazer isto com as regras que garantem credibilidade é não só um desafio, mas também uma oportunidade.
Trazer notícias que fazem as pessoas sentir-se bem com o mundo e não apenas deprimidas com informação jornalística não significa deixar de escrutinar os diversos poderes da sociedade, função que explica porque associamos uma imprensa livre à democracia. Mas, num momento da história com tanto ruído e tanta divisão, a informação credível, não pateta e não condescendente sobre as razões que permanecem, como sempre permaneceram para termos esperança na nossa humanidade, capacidade de inovar e de melhorar a forma como vivemos é também serviço público e o jornalismo não se deveria demitir dele.
E também não significa competir com influencers na mesma medida, no mesmo território ou com as mesmas premissas. Mas significa disputar a atenção das pessoas com uma proposta diferente, seguindo regras que definem a profissão, mas repensando, em vários contextos, a forma como a relação com o público deve ser estabelecida.
“Embora os jornalistas tenham referido a ‘manutenção da credibilidade de uma fonte de notícias fiável’ como sendo o principal desafio do setor no ano passado, logo atrás veio a ‘adaptação à mudança do comportamento do público relativamente ao consumo da comunicação social’". Esta é justamente uma das conclusões do Relatório sobre o Estado dos Media (2024) publicado pela Cision, plataforma de clipping utilizada por empresas e agências. “Competir com influencers nas redes sociais e criadores de conteúdo digital para captação da atenção do público”, acrescenta o relatório, “entrou no top cinco (logo a seguir a “falta de pessoal e recursos” e “diminuição das receitas”). Estes desafios emergentes indicam que os jornalistas estão com dificuldades para acompanhar as mudanças na forma como o público recebe as suas notícias e informações”.
Jornalismo, jornalistas, redações e influencers
Existem hoje jornalistas que têm em nome individual mais seguidores do que meios de comunicação social. Jornalistas que rivalizam nessa disputa de atenção com redações inteiras, além, claro, de outros influencers, humoristas, celebridades em geral. Por causa de toda esta disputa de atenção, há também jornalistas que investem seriamente em serem, eles próprios, uma “marca” de comunicação social que compete diretamente com as marcas de media, competição a que se junta ainda a condição de comentador televisivo, categoria que hoje abarca os verdadeiros analistas e os profissionais de Twitter/X que se empenharam em dar nas vistas.
No que respeita aos jornalistas, alguns conseguem tornar-se “marcas de comunicação” pela qualidade do seu trabalho e pela capacidade de agregar à sua volta pessoas que se interessam pela forma como comunicam o mundo. Outros conseguem-nos com um mix de fotografias da família, dos cães, das férias e de citações do que andam a ler que intercala com efetivo trabalho jornalístico, mas que é entendido como a rampa para ganhar a atenção de pessoas pela via da relação que estabelecem.
Esta fusão da vida pessoal e da vida profissional é uma “novidade” que já não é nova há 20 anos pelo menos. As redes sociais trouxeram-se a todos nós espaço para publicitar o que fazemos e interagir com os outros e cada um decide como as usa. Há 20 anos, a vida familiar / pessoal dos jornalistas era maioritariamente desconhecida, com exceção dos que tinham uma vida pública mais visível e que apareciam retratados em revistas sociais. O Facebook e o botão de “like” mudaram muita coisa, desde as mais profundas e preocupantes, às mais banais. É banal ser mais popular porque há pessoas que gostam de ver as nossas fotos na praia ou a fazer a árvore de Natal, sem que isso tenha nada a ver com o trabalho que cada um faz, mas essa banalidade só se torna preocupante quando a escolha de um determinado jornalista em detrimento de outro se justifica pelo número de pessoas que o seguem nas redes sociais.
O que nos traz de volta à ação de charme do Partido Democrata com os criadores de conteúdo / influencers. No fundo a pergunta é sempre a mesma: quem vende mais? Quem nos traz mais pessoas atrás? E não é diferente de trazer atores, músicos, atletas para a lista de apoiantes de um político. O que se espera com isso é que os fãs desses mesmo atores, músicos e atletas sigam as suas pisadas no apoio e isso de traduza em votos. Mais, é cada vez mais comum, vermos atores ou outras celebridades a fazer conversas com políticos e a ter uma audiência muito superior em função disso [o inverso também é verdade, veja-se o investimento do casal Obama na produção de conteúdos].
A diferença poderá estar, simplesmente, num erro de perspetiva, partilhado tanto pelo público como pelos jornalistas.
Os criadores de conteúdo/ influencers não se definem por produzir informação e não respondem pelo seu rigor, isenção, verificação ou contraditório além daquilo que os obrigue a sua própria ética individual. Isso faz de alguns, independentemente da forma como se apresentam, elementos que melhoram e trazem algo de novo ao espaço público. E faz de outros elementos que apenas o degradam. Uns e outros, estão noutra esfera que não a jornalística. A competição pela atenção do público não é, ou não deveria ser, entre estes dois grupos como se fossem equivalentes. Não são e, provavelmente, o que falta é também a tal literacia para que o público o entenda.
Veja-se o caso de um dos influencers convidados para a Convenção Democrata. Chama-se Jeremy Jacobowitz e é um influencer de gastronomia que experimenta pitéus pelo mundo e tem cerca de 800 mil seguidores entre o TikTok e o Instagram. É apoiante dos democratas e nunca se apresenta como jornalista, mas fez entrevistas na arena da Convenção Democrata a vários políticos a quem perguntou: “se pudessem descrever Kamala e Trump como um prato de comida, qual seria?”. Quando questionado sobre a sua presença num dos maiores eventos políticos da América, respondeu: “sei que me queriam cá. Não estou aqui para colocar questões embaraçosas”, o que atesta a sua honestidade perante o papel que estava a desempenhar.
As respostas que gerou são facilmente conteúdo “giro” e altamente partilhável nas redes sociais. Independentemente dos políticos em causa, fica depois ao critério dos cidadãos e eleitores escolher se querem decidir o seu voto a partir daqui ou se o dinheiro com que contribuem nos impostos e a os problemas que enfrentam no bairro, na escola ou na sociedade merecem que dediquem a sua atenção a fontes de informação - produzida e regida com esse fim.
Aos jornalistas cabe dedicarem algum tempo não apenas a produzir informação, mas a pensar como é essa mesma informação entra na vida de todos nós e contribui para que nos sintamos mais capazes, mais seguros e, no limite, mais competentes como cidadãos. A cada um de nós cabe decidir o que queremos consumir quando se trata de informação e de que forma a que isso contribui para a nossa saúde enquanto cidadãos e seres humanos. Não é assim tão diferente de decidirmos se comemos fast food todos os dias ou aprendemos a alimentar-nos de forma mais equilibrada.
Há duas semanas, o presidente dos Estados Unidos introduziu uma nova categoria de eventos na Casa Branca – a primeira “White House Creator Economy Conference” para a qual chamou dezenas de influencers (Marcelo Rebelo de Sousa foi percursor há uns anos, só não lhe chamou conferência).
Houve jornalistas que ficaram indignados, houve influencers que ficaram depois indignados com a indignação dos jornalistas. Segundo um dos cridores de conteúdo presentes, e autor da newsletter "Future Social", o Presidente Biden partilhou que um dos momentos em que tinha percebido o impacto dos influenciadores foi quando um do nomes fortes de redes sociais lhe agradeceu publicamente por ter baixado o preço da insulina. “Essa conversa teve mais cobertura sobre a minha luta por preços justos nos medicamentos do que qualquer outra coisa”, terá afirmado.
A história em si mesmo é reveladora das regras do jogo – desde que todos as saibam ou estejam conscientes delas. Claro que é importante para Joe Biden ter um influencer com milhões de seguidores a dizer ao ‘seu’ público de seguidores que está grato ao presidente americano. Biden é um político e os políticos precisam de boa comunicação. Também precisam de good press (boa imprensa) e o problema é precisamente a confusão entre a boa comunicação digital porque um influencer disse bem do presidente e o que a imprensa tem por obrigação fazer, que é menos agradecer ao presidente medidas, sejam lá elas quais forem, e mais trabalhar para que a informação sobre medidas necessárias à sociedade chegue ao maior número de pessoas possível.
Antes de Biden baixar o preço da insulina, houve muitos jornalistas que trabalharam para que o tema da injustiça no acesso aos medicamentos nos Estados Unidos entrasse na agenda política. É provável que Biden saiba o nome de alguns e que até se tenha sentido visado por outros. Mas é por isso que se diz que o jornalismo é também uma missão e ela é cumprida quando o jornalista não se esquece que a notícia, a reportagem, a entrevista não é sobre ele. Pode ser cada vez mais difícil na era do narcisismo profundo, mas continua a ser verdade.
Valeria ainda a pena falar do papel que políticos e marcas que investem orçamentos chorudos nas redes sociais podem ter em tornar as regras mais claras e o ar mais respirável. Todos os dias 'nascem' na internet celebridades às quais não se conhece currículo ou pensamento, mas que são validadas porque têm - esse é o cartão de visita - muitos seguidores. É, sem dúvida, a 'democratização' da internet a funcionar, mas é também, em muitos casos, a equiparação da banalidade à excecionalidade para não dizer talento. Se um tonto levasse atrás de si pela rua um milhão de pessoas, acharíamos simplesmente tonto ou até perigoso - na internet, passa a ser critério de relevância.
Por outro lado, as plataformas de redes sociais são hoje muito menos transparentes do que a tecnologia permite e a principal razão é porque os grandes donos da internet são empresas privadas.
Há poucas semanas, a Meta, dona do Facebook e do Instagram, fechou uma plataforma que tinha adquirido em 2016, a CrowdTangle, que permitia medir o chamado ‘ engadgement’ de publicações e contas nas redes sociais. Porquê? Porque a plataforma foi usada também por jornalistas para sugerir ao Facebook que o seu algoritmo favorecia conteúdo hiper-politizado e muitas vezes favorecendo o conteúdo mais extremado. O TikTok divulgava dados sobre algumas das hashtags mais em alta e também deixou de o fazer após a escalada do conflito entre Israrel e o Hamas. São dois exemplos entre vários que evidenciam uma realidade que temos optado por não querer abordar: as redes sociais são um negócio e as empresas que as gerem fazem o melhor para o seu negócio que é ‘vender’ a atenção do maior número possível de pessoas. Se a forma como o fazem é ética, tem regras e consequências – como o jornalismo, goste-se ou não, tem – é a pergunta que precisamos de nos fazer enquanto sociedade.
Há uns anos, um conceituado jornalista chamado Emídio Rangel, proferiu uma frase que ficou para a história ao dizer que uma televisão tanto podia vender políticos como sabonetes [in documentário “Esta televisão é sua”]. As redes sociais também e não foram os influencers que inventaram o “produto”, apenas o estão a usar.
Comentários