Lá está, não me lembro de muita coisa. Talvez tenha reconstituído as recordações com a ajuda daqueles DVD's de resumo de competições internacionais que se compravam com os jornais desportivos ou assim. Sim, é escandaloso que a tecnologia DVD, hoje em dia, seja quase somente utilizada em textos nostálgicos. Bom, passámos aquela fase de grupos de forma imaculada, a despachar Inglaterra com a pastilha do Figo lá para dentro, a Roménia e depois a Alemanha, na altura campeã europeia em título, jogando com os menos utilizando, por 3-0 (!) com três golos de, olhó gajo, Sérgio Conceição.

Mas a verdade é que a primeira memória desse europeu que conservo intacta é estar na casa de férias de uns amigos dos meus pais a comer feijoada e a ver os dois golos de Nuno Gomes à Turquia, que nos abriram caminho para a meia-final. Tinha seis anos. Seis anos que não estavam preparados para o que se seguiria. Uma meia-final ingrata, contra o inimigo com quem faríamos contas mais tarde. Até começámos a ganhar, com mais um golo de Nuno Gomes, logo aos 19 minutos. Na segunda parte, Henry empatou o jogo. No prolongamento, foi o que se sabe. Wiltord contorna Baía junto à linha de fundo, manda uma biqueirada e a bola vai ter com um objeto bastante semelhante com a mão de Abel Xavier, mas que claramente não era. Ouviu, senhor Günter Benkö, NÃO ERA MÃO. Ok, já passaram 18 anos. Podemos admitir: era obviamente penálti. Enfim, foi o início de uma longa jornada de expectativas defraudadas. Ah, e quem é que estava no banco nesse jogo? Exato, Quim, que hoje ainda recupera dos festejos da conquista na Taça de Portugal. Giro, não é?

Dois anos depois estávamos a abandonar sem glória o Mundial da Coreia e do Japão, que se jogou com aquela bola, a Fevernova, que rolou depois durante vários meses no recreio da minha escola primária, na versão esponjosa que vinha com o Happy Meal. Os jogos eram cedo, eu estava em aulas, pelo que me poupei à vergonha de ver aquele desastre.

Em 2004, tudo mudou para mim. Na minha vida, o futebol passou de algo que me interessava para uma perigosa obsessão. Éramos anfitriões de uma grande competição europeia e tínhamos o Scolari, o maior mobilizador deste país, muitas vezes desligado (e ainda bem) do conceito de patriotismo, do último século. Ainda hoje sei a letra toda da música do anúncio da Galp, cantada pelo Carlos Afonso, ou Bondage. “Será demais pedir a Taça, nada que um adepto com orgulho não o faça”.

Começámos com aquela cruel premonição, perdendo com a Grécia de Otto Rehhagel no jogo de abertura no Dragão. Acabámos por passar a fase de grupos, depois de derrotar a Rússia e a seguir a Espanha, com outro tiro de Nuno Gomes, jogo que vi num restaurante espanhol do Bairro Alto. Vieram os quartos-de-final, com a Inglaterra a marcar primeiro, Postiga a empatar de cabeça após cruzamento de Simão. Prolongamento com petardo de Rui Costa, pouco tempo depois Lampard marca, 2-2. Penáltis: Beckham manda a bola para Júpiter, Rui Costa falha, Postiga marca à Panenka, Ricardo dispensa as luvas para defender o remate de Darius Vassel e marca ele o penálti decisivo. Euforia máxima. Seguimos para as meias, onde, frente à Holanda, Cristiano Ronaldo marca de cabeça e Maniche levanta o estádio com um dos melhores golos da competição. Só podia dar em título. Mas não deu. Angelos Charisteas estraga-me a infância aos 57’ daquele fatídico jogo no Estádio da Luz. Foi aí que aprendi a sofrer.

Em 2006, fomos novamente espoliados da hipótese de estar na final por árbitros que amam franceses. Em 2008, não me lembro bem e não me apetece pesquisar, mas fomos aos quartos, acho. Em 2010, vacilámos nos oitavos frente à Espanha. Em 2012, no Euro, também caímos frente à Espanha, mas nas meias-finais e nos penáltis. E a vergonha de 2014? Já ninguém se lembra, porque em 2016 cumprimos os nossos sonhos. Já passaram dois anos e sinceramente eu ainda não acredito que a sorte, que nunca quis uma relação duradoura connosco, tenha jogado tão bem pelo nosso lado por naquela final de Paris.

Basicamente, tenho memórias da seleção em todas as fases da minha vida. Desde uma equipa que praticava um futebol incrível e que não ganhou nada, até uma seleção que jogava pouco mas que serviu para festejarmos durante dois meses, ano sim, ano não, lá vinha um verão marcado pela expectativa. Agora, em 2018, já não é a mesma coisa. Podemos chegar longe, podemos vacilar logo nos primeiros jogos. Mas a novidade é que, pela primeira vez, já não vamos ser vistos como o underdog. E a isso não sei se me consigo habituar.

Recomendações:

O documentário “Chegámos Lá, Cambada” sobre os últimos 30 anos da nossa seleção.

Este especial de stand-up.