Os anglo-saxónicos, que gostam de quantificar e codificar tudo, do amor à culinária, acham que a amizade, tal como a mecânica quântica, é uma questão de regras. Nós, latinos, mais emocionais do que técnicos, preferimos andar ao sabor das circunstâncias. Mas as grandes questões mantêm-se: como fazer amigos e, sobretudo, como os conservar?
Os tempos mudaram, evidentemente. O ritmo de vida de hoje é muito diferente de há cinquenta anos, para não recuar ainda mais. Paradoxalmente, com tanto progresso, as pessoas têm menos tempo disponível e mais acontecimentos em tempo real com que se preocuparem.
"Que tal nunca? Nunca está bem para ti?"
Telefonei a um amigo de longa data, que já não vejo há anos, porque soube duma desgraça pessoal que lhe aconteceu; queixou-se amargamente do afastamento geral entre pessoas que eram próximas e culpou a pandemia. “Temos que nos ver!”, disse no fim, uma expressão que quer dizer, realmente, que não temos que nos ver e nunca se sabe quando nos veremos. Há até um cartoon icónico da revista “The New Yorker” em que o tipo diz ao telefone: “Que tal nunca? Nunca está bem para ti?”
A pandemia é uma boa razão, e talvez tenha mesmo sido um marco divisor das gerações que a atravessaram. Durante dois anos, o contacto entre todos, até os mais íntimos, sofreu prementes pressões “higiénicas” e psicológicas. Acabada a aflição, muitos relacionamentos tinham perdido as suas rotinas e, em geral, as pessoas parece que se tornaram mais desconfiadas, mas cépticas, menos solidárias. Há outras circunstâncias a levar em conta; o mundo está mais agressivo, os “maus” parecem dominantes tanto na cena mundial como lá no escritório, vive-se outra pandemia, a do descrédito pela compaixão alheia. Segundo outro amigo meu, e não foi só ele a dar por isso, o trânsito está mais agressivo, os condutores menos dispostos a deixar passar, as travagens mais bruscas no meio do enxame de carros topo de gama (já repararam como, neste país de tanga, os carros topo de gama são cada vez mais?) e as trotinetes incautas e irresponsáveis. Salve-se quem puder, no trânsito e na vida.
Todos nos lembramos, ou ouvimos dizer, como era no tal do “antigamente”. As amizades começavam cedo, na escola ou na vizinhança, e duravam para toda a vida. Era-se amigo “para sempre”. Isto devia-se também, é verdade, ao facto de haver menos mobilidade; nascia-se, vivia-se e morria-se na mesma cidade, até no mesmo bairro, mudava-se menos de emprego. As famílias tinham mais filhos e incluíam ascendentes e descendentes, primos, tios e sobrinhos. As chamadas “famílias monoparentais” e as pessoas que viviam sozinhas eram a excepção, não a maioria. No comércio de bairro estabeleciam-se relações de simpatia com o dono do “lugar”, da drogaria e da farmácia. Desenvolviam-se pequenas comunidades entre os vizinhos da rua, os frequentadores regulares do mesmo café à mesma hora, as pessoas que se encontravam no autocarro 35 no mesmo horário. Comentavam-se as disputas e as doenças da vizinhança, os alunos das escolas pertenciam a “seitas” . Isto mesmo nas cidades grandes, que não eram mais do que aglomerados de cidades pequenas separadas por uma avenida, um logradouro mais inacessível.
Nessa sociedade mais tribal, digamos, identificávamo-nos com as nossas tribos - bairro, escola, trabalho, praia das férias - e, muito naturalmente, era aí que criávamos as nossas amizades, namoros e casamentos. Não recordo isto com saudade ou um sentimento reacionário; a mudança de paradigma desses tempos para a atualidade trouxe vantagens inegáveis (e também inexoráveis). Viajamos mais, mudamos facilmente de cidade e de país, o emprego não é um sítio onde se entra para ficar até à reforma. O chamado “elevador social” passa por muitos andares, as amarras de origem podem ser quebradas para procurar novas oportunidades, os estrangeiros são menos estranhos.
Esta evolução é sem dúvida atraente, cosmopolita, ao mesmo tempo que amplia as oportunidades de novas amizades - com o inevitável prejuízo daquelas que eram “eternas”. Por vezes, no meio das mudanças, ficamos sem os amigos de sempre e ainda não temos novos amigos para sempre.
Voltando aos anglo-saxónicos e à sua mania de codificar tudo, há uma página na Internet que ensina alguns truques para fugir ao deserto amigável. O truque, dizem eles, é tentar conhecer uma pessoa nova todos os dias; chegar ao pé de alguém que nos parece interessante e meter conversa. Há até sítios onde isso passa por mais natural, como um bar ou um espectáculo. Fora o risco de levar um “fora” ou mesmo uma estalada, parece uma ideia um bocado esdrúxula. Aprender uma técnica para fazer novos amigos parece tão artificial como aprender a dançar numa escola ou frequentar um curso de “envolvimento emocional”.
As emoções, por natureza, devem ser aleatórias. É como o amor: quanto mais se procura, menos hipóteses há de o encontrar.
Os humanos, tal como os cães, sentem uma necessidade compulsiva de companhia, de adorar o outro. Contudo, sendo perversos, o que os cães não são, também têm uma compulsão irreprimível de transformar as relações em tramas complicadas onde o egoísmo e o oportunismo, mesmo não admitidos, fazem sempre parte da equação. Cultivar uma amizade - mesmo uma daquelas amizades “naturais” que se desenvolvem sem escolhos e criam uma enorme confiança no outro - requer compreensão pelas diferenças e respeito pelas idiossincrasias.
Para confiar num amigo é preciso que ele também confie em nós, e a confiança é um bem que, tal como os recursos naturais, parece cada vez mais difícil de conservar. É a tal perversidade da espécie, que sempre existiu, mas que hoje está mais à vista.
O que me parece que mudou não foi a amizade; ela continua a existir com os seus valores que tanto nos consolam. O que mudou foi o tempo que as amizades duram, a sua “garantia por toda a vida”. A nossa mobilidade, física e intelectual, faz com que as amizades sejam a prazo. Algumas duram para sempre, como sempre duraram, mesmo que não haja contacto durante muito tempo. Outras começam e acabam, mesmo que não haja um conflito ou um motivo facilmente detectável.
Num mundo em mudança acelerada, temos de considerar que tudo é efémero. Tal como os enlatados do supermercado, há uns que têm prazo de validade, há outros que se conservam indefinidamente. A amizade, que seja eterna enquanto dure. Sem ressentimentos.
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