Não é a primeira vez que a agitação estudantil leva a uma série de acontecimentos que acaba com a ordem instituída. Mas, pelo menos que me lembre, nunca tinha acontecido uma revolução ser liderada por estudantes, os militares aderirem, e formar-se um novo governo civil, dirigido por um Prémio Nobel da Paz.

As revoluções, tal como os rebuçados, vêm em todas as cores. O sabor mais comum é o governo civil ser substituído por um golpe militar que se instala por tempo indefinido (Brasil, 1964, Chile, 1973, etc, etc, etc.) e promete novas eleições que nunca acontecem (Mianmar, 1962, Egipto, 2015, etc, etc, etc.)

Um sabor mais raro, assim como o alcaçuz, é a revolução popular que substitui um governo civil por outro mais a seu gosto (Geórgia, 2003, Ucrânia, 2014…) A cor mais inédita é os militares derrubarem uma ditadura e criarem um governo civil (Portugal, 1974).

Enfim, não vou listar aqui as muitas alternativas possíveis, e as ainda mais alternativas subsequentes, em que as promessas e os anseios duma revolução sofrem tristes retrocessos e contra-voltas. Mas a revolução no Bangladesh, pelo menos inicialmente (só tem 12 dias…) parece ser também um sabor inédito.

Vamos ver como evolui.

Mas, antes, o contexto. Afinal de contas nós, europeus, só conhecemos o Bangladesh por ser aquele país que produz a preço de banana (e à custa de trabalho semi-escravo) as grandes marcas internacionais que compramos a preços exorbitantes. (se essa situação vai mudar, é outra história.)

Tudo começa com a independência da Índia, em 1947. A jóia do Império Britânico, já então o país mais populoso do mundo, ia do Afeganistão a Oeste até à China e Mianmar a Leste - isto em termos geográficos gerais.

A população praticava duas religiões maioritárias, a hindu e a muçulmana, e ficou logo patente que não se iriam entender num país só. A minoria muçulmana, chefiada pelo líder histórico Muhammad Ali Jinnah, venerado até hoje como “o Pai do Paquistão”, não se entendeu com a família indiana Nehru, herdeira de Gandhi, e logo nesse ano foram criados dois países: a Índia, propriamente dita, que abrange praticamente todo o sub-continente, e o Paquistão, dividido em dois territórios, o Paquistão, a Oeste, e Bengala, a Leste.

As duas metades do Paquistão tinham a separá-las milhares de quilómetros de território indiano e, logo à partida, um terceiro território a meio caminho, Caxemira, sobre cuja soberania não se entendiam.

Governar Bengala (capital: Daca) a partir de Islamabad era um exercício quase impossível, agravado pela animosidade constante com a Índia, que não facilitava o contacto entre as duas partes, nem por via aérea. Mas o principal problema de Ali Jinnah, que governou o Paquistão até morrer, em 1948, era a animosidade hindu/muçulmana.

Além das escaramuças constantes, sobretudo na região de Caxemira, os dois países envolveram-se em quatro guerras abertas, em 1948, 1965, 1971 e 1999. Na última, conhecida como a Guerra de Kargil, ambos já possuíam armas nucleares (o Paquistão foi o primeiro), mas abstiveram-se prudentemente de se auto-destruir. A Índia saiu-se sempre vencedora, ocupando até hoje o Estado da Caxemira.

A somar aos problemas com a Índia, o Paquistão viu-se a braços com uma revolta da parte oriental, Bengala, que passou a auto-intitular-se Bangladesh (“País dos Bengalis”).

A questão ideológica - a desculpa, digamos assim - era o facto de a minoria hindu do Bangladesh se sentir maltratada pelos muçulmanos dirigidos por Islamabad.

A distância não impediu os paquistaneses de reprimirem brutalmente a independência bengali - calcula-se que tenham morrido 30 milhões de pessoas, numa população de 150 milhões. A Índia, evidentemente, ajudou os independentistas de todas as maneiras e, finalmente, em 1971, nasceu a república parlamentar do Bangladesh, presidida pelo sheikh Mujibur Rahman.

Rahman, o herói da independência, preso e torturado pelos paquistaneses, não durou muito. Em Janeiro de 1975, declarou-se presidente para a vida e proibiu todos os partidos políticos. Os seus próprios militares não gostaram e em Agosto assassinaram a família e voltaram ao sistema democrático parlamentarista.

Quem ganhou legitimamente as primeiras eleições foi a filha do falecido, sheikh Hasina, que começou por governar decentemente e desenvolveu bastante o país - é desta altura que data o nascimento da indústria de vestuário que exporta para o mundo inteiro. Mas Hasina não resistiu às tentações do poder e as eleições seguintes, em 2014 e 2018, foram completamente aldrabadas, com a oposição impedida de concorrer, urnas mal contadas e todos os habituais golpes.

Além disso Hasina e os seus amigos começaram a receber quantias fabulosas da China e do Japão, as quais, se é verdade que serviram para projectos estruturais importantes, por outro também originaram uma corrupção maciça.

Convém lembrar, também, que a tal indústria de vestuário progredia graças a salários de miséria e condições de trabalho inconcebíveis. Há uns anos uma fábrica desabou, matando as operárias, e descobriu-se que as próprias estruturas industriais não obedeciam aos códigos de segurança. Resumindo, Hasina e os seus amigos enriqueciam enquanto a população se via a braços com uma inflação insustentável.

O descontentamento foi crescendo até ao ano passado, quando o Governo deitou a gota de água que faltava: um decreto altamente contestado dava prioridade nos melhores postos governamentais aos filhos (e netos) dos “heróis” da Revolução de 1971. Na verdade esse decreto era antigo, mas os militares que realmente detinham o poder por trás de Hasina não o levaram em consideração.

A sua reintrodução excluia a grande massa de jovens que entretanto tinha chegado à idade de trabalhar e tirava-lhes as melhores possibilidades. Esses jovens são hoje estudantes e rapidamente organizaram um movimento de rua constante. Inicialmente, os militares reprimiram as manifestações - o que significa dezenas de mortos, evidentemente -, mas o movimento ganhou tal proporção que os generais acharam que era melhor optar por uma mudança.

Os jovens invadiram o palácio presidencial e Hasina teve de fugir de helicóptero.

E aqui entra o imprevisível: militares e estudantes, em rápidas conversações, decidiram nomear presidente interino um senhor de 83 anos chamado Muhammad Yunus.

Yunus tornou-se conhecido - e ganhou o Nobel da Paz - ao fundar o Banco Grameen, uma instituição de crédito que só emprestava a mulheres pobres para que iniciassem os seus próprios negócios.

O Banco foi um grande sucesso e tirou milhares de famílias da miséria, com o benefício de apoiar mulheres num país muçulmano. Yunus tornou-se um herói popular e, simultaneamente, um inimigo de Hasina.

A sua nomeação pode ter um grande significado - ou pode não ter. Não se sabe até que ponto os militares não o quererão usar como fachada para a manutenção do sistema corrupto que Hasina tinha montado. Mas há a esperança da fiscalização dos estudantes, que entretanto se tornaram tão importantes que são eles que fazem o policiamento de Daca - os militares e os polícias estão recolhidos nos quartéis.

Para já, esta revolução é atípica. Para o futuro… Bem, o futuro depende de Maomé, não é verdade?