A “operação especial” russa, em território ucraniano, arrasta-se há um ano - 365 dias penosos, um a um, somando centenas de milhares de mortos e mutilados e a destruição bíblica de infraestruturas e casas, num território com 600 mil quilómetros quadrados e mais de 40 milhões de pessoas.
O resultado desta matança horripilante e injustificada é, ao fim de um ano, praticamente nenhum. Nem a Federação Russa absorveu o “não-país” ucraniano, nem a Ucrânia conseguiu recuperar os 27% de território, entretanto perdido.
Como é sabido, uma vez que tem sido diária, semanal e mensalmente noticiado, a guerra passou por várias fases: desde o primeiro momento em que se pensava que duraria uns dias - só até os russos entrarem em Kiev e substituírem o governo ucraniano hostil por simpatizantes seus - até à actualidade, em que se vive uma guerra de trincheiras semelhante à de 1914-18, cada lado avançando e recuando metros para a frente e para trás, sempre com grande custo de vidas e destruição de construções.
A percepção da duração, profundidade e efeitos diretos e colaterais também foi variando nestes doze meses, sem que nenhum dos lados se comprometesse abertamente quanto à duração do conflito.
Esta semana, por fim, foi oficialmente declarado que poderá demorar indefinidamente. O resultado será, sem dúvida, o que se chama em inglês uma “lose/lose situation”: todos perdem. “Todos”, quer dizer, os dois países diretamente envolvidos e o resto do mundo. (Talvez os únicos ganhadores sejam os comerciantes de armamento e os especuladores dos bens básicos que escasseiam por toda a parte.)
Então, o que aconteceu esta semana? À parte dos habituais avanços e recuos e a continuada hecatombe e vivos e inertes, o que aconteceu foi que os dois maiores envolvidos se pronunciaram sobre o futuro, na pessoa dos respectivos presidentes. Na terça-feira, dia 21, o Presidente Biden discursou em Varsóvia, no mesmo dia em que o Presidente Putin se apresentou perante a Assembleia da Federação Russa, com um discurso que é o equivalente ao “Estado da Nação” dos Estados Unidos.
Antes, Biden visitou Kiev, num evidente desafio às ameaças de Putin. Os discursos, radicalmente diferentes, tiveram um ponto em comum: o conflito não tem data marcada para terminar e não terminará tão cedo. São, de facto, dois mundos paralelos que se confrontam.
O discurso de Biden, na Polónia, foi curto e factual, em parte porque falou em inglês para um público polaco, mas dirigindo-se ao mundo, enquanto a fala de Putin foi longa (hora e meia), porque falou para uma audiência com o mesmo idioma, porque foi mais “filosófico” do que factual e, também, porque se dirigiu sobretudo aos seus cidadãos (tanto que partes do que disse não foram traduzidas pelos noticiários russos - mais sobre isto adiante). Mas isto refere-se à forma; o conteúdo é que interessa.
Biden acusa repetidamente Putin de fazer recuar a Europa para uma brutalidade inédita desde a II Guerra Mundial, provocando milhares de mortes e a destruição de cidades inteiras, além de uma lista interminável de atrocidades; “o mundo não aceitará jamais tiranos do seu calibre”, e acrescentou: “os autocratas só entendem uma palavra: não, não e não. Foi o Presidente Putin que escolheu a guerra. Cada dia que passa, essa escolha mantém-se. Podia acabar com ela com uma palavra”. Já que não o faz, o Ocidente vai enviar uma nova leva de equipamento militar no valor de 500 milhões de dólares, e enviará quantas mais forem necessárias.
Durante a visita de Biden a Kiev, os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE encontraram-se em Bruxelas e o vice-Presidente Josep Borrell reiterou que a Europa vai garantir que a Ucrânia terá munições suficientes para se defender. “A Rússia usa 50 mil munições por dia e não podemos ficar atrás. Os ucranianos estão com falta de munições”.
A resposta europeia não tem sido conjunta; alguns países mandam mais armas, outros menos, segundo uma escolha individual, numa espécie de “clube” informal (a Hungria não faz parte, evidentemente) que já gastou cerca de 12 mil milhões de euros. Além disso, cerca de 30 mil ucranianos têm sido treinados em vários países. A Europa tinha os estoques de equipamento e munições bastante em baixo, e vai demorar algum tempo a produzir de acordo com as necessidades.
O discurso de Putin foi bastante diferente. Segundo Tom Nichols, jornalista do “The Atlantic”, o Presidente russo “foi completamente orwelliano”, ou seja, entrou na linha de que a mentira é a verdade. Vou citá-lo, sem link, uma vez que ele escreve na newsletter da revista (que qualquer pessoa pode assinar gratuitamente): “Putin proclamou que foi o Ocidente que começou a guerra, obrigando a Rússia a defender-se. (Quase que disse que a Eurásia sempre esteve em guerra com a Oceania.) Também revelou que a NATO instalou rapidamente bases secretas e laboratórios biológicos perto das fronteiras russas.” Esta última afirmação foi retirada da versão entregue às agências noticiosas ocidentais, pois não tem qualquer sustentação real, mas está no site oficial do governo russo. Mas não foi só isto.
Segundo o neo-czar, a conspiração para tornar a Ucrânia numa anti-Rússia vem dos tempos do Império Austro-Húngaro. E depois lá veio a tirada habitual contra as perversidades do Ocidente, como por exemplo, a legalização dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Finalmente, foi buscar os mantras do tempo da URSS, segundo os quais há uma conspiração entre norte-americanos e nazis para destruir os valores da mãe-Rússia, que serão defendidos até à morte pela Igreja Ortodoxa. O patriarca Kirill lá estava na audiência para sancionar a guerra-santa.
Aliás, a plateia que ouviu Putin foi cuidadosamente selecionada e praticamente entrámos no esquema da URSS, em que é importante estar e muito importante ao lado de quem se está na primeira ou na terceira fila. A propósito, uma ausência notória foi a de Yevgeny Prigozhin, o chefe do grupo mercenário Wagner, que actualmente está a ter um papel destacado nas operações na Ucrânia. Já aqui dedicamos uma coluna ao Wagner.
Prigozhin tem tomado um protagonismo crescente na nomenclatura russa, embora não tenha nenhum cargo oficial. Ultimamente, chegou ao ponto de criticar publicamente os generais russos por não darem apoio e munições suficientes aos seus assassinos. Fê-lo num vídeo de sete minutos, no canal Telegram, uma atitude impensável na Rússia de hoje, onde se pode ir preso só por chamar “guerra” à “operação militar especial”. Mas o Wagner é realmente uma força de respeito; segundo o “The Washington Post” , dos cerca de 200 mil russos mortos ou feridos no conflito, 30 mil serão do grupo Wagner. Há, até, quem sugira que Prigozhin poderia constituir uma ameaça a Putin, pela direita, mas é altamente improvável. O Presidente simplesmente lhe permite certas liberdades porque o grupo que dirige tem vantagens notáveis: não responsabiliza o país (uma vez que não existe oficialmente), pode recrutar nas prisões (o que é ilegal) e pode não obedecer às Leis da Guerra, com o risco de ser processado internacionalmente.
Ainda quanto ao discurso de Putin, a única afirmação substantiva que fez foi que a Rússia suspende a sua participação no tratado nuclear START, assinado com os Estados Unidos em 2011 e prorrogado até 2026. Note-se que salientou “suspensão” em vez de “retirada” do tratado, mas de qualquer maneira o acordo não tem sido verificado há anos - a ideia era limitar o número de ogivas atómicas dos dois lados em 1.550. De facto, nem os Estados Unidos nem a Federação Russa têm planos para aumentar o seu arsenal nuclear, portanto trata-se de mera retórica.
A questão que se põe, evidentemente, é como é que isto irá acabar; quando e como? Ninguém sabe.
À falta de prognósticos credíveis, transcrevo aqui o que disse o historiador Stephen Kotkin numa entrevista à revista “The New Yorker”: “Imaginemos que você tem uma casa com dez quartos. E imaginemos que eu chego e ocupo dois quartos e dou cabo deles. E quando você tenta deter-me, eu começo a partir os outros oito quartos. Então você fica a um canto e eu noutro, mas continuo a partir tudo. Você precisa da sua casa para viver e sabe que eu tenho a minha própria casa com mil quartos. Então, se você me impedir de partir mais coisas, está a ganhar ou a perder? (...) A sua estratégia é, como a de Putin, que “se eu não posso ter, então ninguém pode! (...) Os ucranianos lutam contra os invasores porque querem fazer parte da Europa. Se a Ucrânia reconquistar todo o seu território mas não entrar para a União Europeia, será uma vitória? Ou então, se a Ucrânia perder parte do seu território, mas entrar para a União Europeia, nesse caso é uma vitória? Eu acho que sim.”
Kotkin tem razão, mas o problema é que neste momento os políticos ocidentais não podem admitir que seria essa a vitória, porque daria força a Putin para ocupar e destruir mais “quartos da casa”... Por outras palavras: enquanto não houver uma situação em que esteja garantido que Putin, ou a Federação Russa dirigida por outro, não fará mais exigências, não é possível estabelecer o que será uma vitória para a Ucrânia.
Entretanto, a guerra continua.
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