Os livros são mais que textos: são objectos, com volume e peso — e ainda bem (menos quando temos de mudar de casa).
Ora, estes objectos pesados e poeirentos são, entre muitas outras coisas, uma espécie de âncora das nossas memórias.
Explico-me: acontece-me, por vezes, reler certo livro (ou mesmo abri-lo ao acaso) e recordar então o lugar onde o li e o que sentia na altura.
Aliás, não é preciso ter lido o livro todo para que se dê este fenómeno: às vezes, pego num livro por ler e lá me vem à cabeça o momento em que o comprei ou o lugar onde o folheei pela primeira vez, com vontade de lê-lo até ao fim, vontade que lá ficou guardada por muitos e bons anos entre as duas capas.
Por isso, cada livro é também uma pequena história dentro da minha vida. Lembrei-me disto por causa dum livro que comecei a ler hoje: Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho.
Li pela primeira vez o livro por volta dos meus catorze anos, depois de o comprar numa feira do livro na minha escola primária, onde voltara para visitar a minha mãe, que era lá professora nessa altura.
Essa primeira edição era dum encarnado romano — ou duma cor que Mário de Carvalho descreveria com as palavras exactas, como é seu hábito: é um escritor de um vocabulário imenso e uma exemplar clareza, um escritor que me resolveu o problema de saber o que responder quando me pedem um exemplo de boa escrita.
Comprei o livro porque uma das leituras que me tinha aberto a porta aos prazeres da literatura fora o conto «A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho». Encontrei-o no meu manual de Português do oitavo ano e o primeiro parágrafo fez-me abandonar a voz do professor e as perguntas por responder — li aquela história toda com um prazer de que nunca me esqueci.
Bem, nesse dia dos meus 14 anos, peguei no Deus que passeava e fui para casa. Comecei a ler e não parei. Imaginar Tarcisis é uma das formas que tenho de recordar a casa onde então vivia com os meus pais, naquela terra que era, na altura dos romanos, uma ilha.
O sabor do romance era bem diferente da gulodice da «Inaudita Guerra». Fiquei, durante algumas páginas, desorientado, como adolescente que se vê perdido num mundo romano, onde irrompiam bárbaros — e cristãos. Lembro-me de pensar que o livro tinha um sabor metálico. Não sei o que isso quer dizer, mas foi o que senti. Não consegui parar de ler.
Poucos anos depois, na minha fúria de arrebanhador de livros, fui comprando semanalmente uma colecção da Planeta DeAgostini de romances portugueses. Há quem torça o nariz a estas colecções de papelaria, mas não sofro desse mal. Para mim um livro é um livro. Comprei a colecção na papelaria dos meus avós maternos, de onde guardo tantas recordações muito boas e uma recordação dolorosíssima.
Adiante: o certo é que nessa colecção lá vinha o Deus que passeia e acabei com dois livros iguais, mas de capas diferentes, nas estantes.
Muitos anos depois, peguei nesse segundo exemplar, com o meu filho de dois anos ao lado, porque precisava de escolher um livro para levar para Ponte de Sor, a terra dos meus sogros. Velhas recordações da adolescência convenceram-me a levar o tal Deus.
Li-o de novo e soube-me ainda melhor que da primeira vez — não será uma questão de ser uma edição diferente, mas sim dos anos de leituras que, entretanto, passaram.
Este foi um livro que comprei a visitar a escola primária, armado em quase adulto a voltar ao local de infância; foi um livro que li aos 34, com um sorriso de adulto a recordar o jovenzito que lia romances armado em gente grande; e é agora um livro que leio muitos anos depois, numa outra casa, com dois filhos e uma crónica para escrever.
Foi inevitável: tinha de escrever sobre este livro que parece um fio cosido a diferentes décadas da minha vida. E, claro, tenho quase a certeza de vir a encontrá-lo daqui a muitos anos e recordar este preciso momento em que termino a crónica.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Assim ou Assado: 100 perguntas sobre a língua portuguesa.
Comentários